quinta-feira, 29 de abril de 2010

Voleibol

Voleibol (chamado frequentemente no Brasil de Vôlei e em Portugal de Vólei) é um desporto praticado numa quadra dividida em duas partes por uma rede, possuindo duas equipes de seis jogadores em cada lado. O objetivo da modalidade é fazer passar a bola sobre a rede de modo a que esta toque no chão dentro da quadra adversária, ao mesmo tempo que se evita que os adversários consigam fazer o mesmo. O voleibol é um desporto olímpico, regulado pela Fédération Internationale de Volleyball (FIVB).
O volei foi criado em 9 de fevereiro de 1895 por William George Morgan nos Estados Unidos da América. O objetivo de Morgan, que trabalhava na "Associação Cristã de Moços"(ACM),era criar um esporte de equipes sem contato físico entre os adversários, de modo a minimizar os riscos de lesões. Inicialmente jogava-se com uma câmara de ar da bola de basquetebol e foi chamado Mintonette, mas rapidamente ganhou popularidade com o nome de volleyball. O criador do voleibol faleceu em 27 de dezembro de 1942 aos 72 anos de idade.


Em 1947 foi fundada a FIVB. Dois anos mais tarde, foi realizado o primeiro Campeonato Mundial de Voleibol da modalidade, apenas para homens.Em 1952, o evento foi estendido também ao voleibol feminino. No ano de 1964 o voleibol passou a fazer parte do programa dos Jogos Olímpicos, tendo-se mantido até a atualidade.
Recentemente, o voleibol de praia, uma modalidade derivada do voleibol, tem obtido grande sucesso em diversos países, nomeadamente no Brasil e nos EUA. Nos esportes coletivos, a primeira medalha de ouro olímpica conquistada por um país lusófono foi obtida pela equipe masculina de vôlei do Brasil nos Jogos Olímpicos de Verão de 1992. A proeza se repetiu nos Jogos Olímpicos de Verão de 2004, nos Jogos Olímpicos de Verão de 2008 foi a vez da seleção brasileira feminina ganhar a sua primeira medalha de ouro em Olimpíadas.

Regras
 
Para se jogar voleibol são necessários 12 jogadores divididos igualmente em duas equipes de seis jogadores cada.
As equipes são divididas por uma rede que fica no meio da quadra. O jogo começa com um dos times que devem sacar.Logo depois do saque a bola deve ultrapassar a rede e seguir ao campo do adversário onde os jogadores tentam evitar que a bola entre no seu campo usando qualquer parte do corpo (antes não era válido usar membros da cintura para baixo, mas as regras foram mudadas). O jogador pode rebater a bola para que ela passe para o campo adversário sendo permitidos dar três toques na bola antes que ela passe, sempre alternando os jogadores que dão os toques. Caso a bola caia é ponto do time adversário.

O jogador pode encostar na rede (desde que não interfira no andamento do jogo), exceto na borda superior, caso isso ocorra o ponto será para o outro time. O mesmo jogador não pode dar 2 ou mais toques seguidos na bola, exceção no caso do toque de Bloqueio.
As partidas de voleibol são confrontos envolvendo duas equipes disputados em ginásio coberto ou ao ar livre conforme desejado.
O campo mede 18 metros de comprimento por 9 de largura (18 x 9 metros), e é dividido por uma linha central em um dos lados de nove metros que constituem as quadras de cada time. O objetivo principal é conquistar pontos fazendo a bola encostar na sua quadra ou sair da área de jogo após ter sido tocada por um oponente.
Acima da linha central, é postada uma rede de material sintético a uma altura de 2,43 m para homens ou 2,24 m para mulheres (no caso de competições juvenis, infanto-juvenis e mirins, as alturas são diferentes). Cada quadra é por sua vez dividida em duas áreas de tamanhos diferentes (usualmente denominadas "rede" e "fundo") por uma linha que se localiza, em cada lado, a três metros da rede ("linha de 25 metros").

No voleibol, todas as linhas delimitadoras são consideradas parte integrante do campo. Deste modo, uma bola que toca a linha é considerada "dentro" (válida), e não "fora" (inválida). Acima da quadra, o espaço aéreo é delimitado no sentido lateral por duas antenas postadas em cada uma das extremidades da rede. No sentido vertical, os únicos limites são as estruturas físicas do ginásio.

Caso a bola toque em uma das antenas ou nas estruturas físicas do ginásio, o ponto vai automaticamente para o oponente do último jogador que a tocou.

A bola empregada nas partidas de voleibol é composta de couro ou couro sintético e mede aproximadamente 65 cm de perímetro. Ela pesa em torno de 270g e deve ser inflada com ar comprimido a uma pressão de 0,30 kg/cm².
Ao contrário de muitos esportes, tais como o futebol ou o basquetebol, o voleibol é jogado por pontos, e não por tempo. Cada partida é dividida em sets que terminam quando uma das duas equipes conquista 25 pontos. Deve haver também uma diferença de no mínimo dois pontos com relação ao placar do adversário - caso contrário, a disputa prossegue até que tal diferença seja atingida. O vencedor será aquele que conquistar primeiramente três sets.


Como o jogo termina quando um time completa três sets vencidos, cada partida de voleibol dura no máximo cinco sets. Se isto ocorrer, o último recebe o nome de tie-break e termina quando um dos times atinge a marca de 15, e não 25 pontos. Como no caso dos demais, também é necessária uma diferença de dois pontos com relação ao placar do adversário.

Cada equipe é composta por doze jogadores, dos quais seis estão atuando na quadra e seis permanecem no banco na qualidade de reservas. As substituições são limitadas: cada técnico pode realizar no máximo seis por set, e cada jogador só pode ser substituído uma única vez - com exceção do Líbero - devendo necessariamente retornar à quadra para ocupar a posição daquele que tomara originalmente o seu lugar.

Os seis jogadores de cada equipe são dispostos na quadra do seguinte modo. No sentido do comprimento, três estão mais próximos da rede, e três mais próximos do fundo; e, no sentido da largura, dois estão mais próximos da lateral esquerda; dois, do centro da quadra; e dois, da lateral direita. Estas posições são identificadas por números: com o observador postado frente à rede, aquela que se localiza no fundo à direita recebe o número 1, e as outras seguem-se em ordem crescente conforme o sentido anti-horário.

O Jogo

No início de cada set, o jogador que ocupa a posição 1 realiza o saque, e, acerta a bola com a mão tencionando fazê-la atravessar o espaço aéreo delimitado pelas duas antenas e aterrissar na quadra adversária. Os oponentes devem então fazer a bola retornar tocando-a no máximo três vezes, e evitando que o mesmo jogador toque-a por duas vezes consecutivas.


O primeiro contato com a bola após o saque é denominado recepção ou passe, e seu objetivo primordial é evitar que ela atinja uma área válida do campo. Segue-se então usualmente o levantamento, que procura colocar a bola no ar de modo a permitir que um terceiro jogador realize o ataque, ou seja, acerte-a de forma a fazê-la aterrissar na quadra adversária, conquistando deste modo o ponto.

No momento em que o time adversário vai atacar, os jogadores que ocupam as posições 2, 3 e 4 podem saltar e estender os braços, numa tentativa de impedir ou dificultar a passagem da bola por sobre a rede. Este movimento é denominado bloqueio, e não é permitido para os outros três atletas que compõem o restante da equipe.

Em termos técnicos, os jogadores que ocupam as posições 1, 6 e 5 só podem acertar a bola acima da altura da rede em direção à quadra adversária se estiverem no "fundo" de sua própria quadra. Por esta razão, não só o bloqueio torna-se impossível, como restrições adicionais se aplicam ao ataque. Para atacar do fundo, o atleta deve saltar sem tocar com os pés na linha de três metros ou na área por ela delimitada; o contato posterior com a bola, contudo, pode ocorrer no espaço aéreo frontal.
Após o ataque adversário, o time procura interceptar a trajetória da bola com os braços ou com outras partes do corpo para evitar que ela aterrise na quadra. Se obtém sucesso, diz-se que foi feita uma defesa, e seguem-se novos levantamento e ataque. O jogo continua até que uma das equipes cometa um erro ou consiga fazer a bola tocar o campo do lado oponente.

Se o time que conquistou o ponto não foi o mesmo que havia sacado, os jogadores devem deslocar-se em sentido horário, passando a ocupar a próxima posição de número inferior à sua na quadra (ou a posição 3, no caso do atleta que ocupava a posição 4). Este movimento é denominado rodízio.


Fundamentos
 
Saque ou Serviço
O saque ou serviço marca o início de uma disputa de pontos no voleibol. Um jogador posta-se atrás da linha de fundo de sua quadra, estende o braço e acerta a bola, de forma a fazê-la atravessar o espaço aéreo acima da rede delimitado pelas antenas e aterrissar na quadra adversária. Seu principal objetivo consiste em dificultar a recepção de seu oponente controlando a aceleração e a trajetória da bola.
Existe a denominada área de saque, que é constituída por duas pequenas linhas nas laterais da quadra, o jogador não pode sacar de fora desse limite.
Um saque que a bola aterrissa diretamente sobre a quadra do adversário sem ser tocada pelo adversário - é denominado em voleibol "ace", assim como em outros esportes tais como o tênis.

No voleibol contemporâneo, foram desenvolvidos muitos tipos diferentes de saques:

Saque por baixo ou por cima: indica a forma como o saque é realizado, ou seja, se o jogador acerta a bola por baixo, no nível da cintura, ou primeiro lança-a no ar para depois acertá-la acima do nível do ombro. A recepção do saque por baixo é usualmente considerada muito fácil, e por esta razão esta técnica não é mais utilizada em competições de alto nível.

Jornada nas estrelas: um tipo específico de saque por baixo, em que a bola é acertada de forma a atingir grandes alturas (em torno 25 metros). O aumento no raio da parábola descrito pela trajetória faz com que a bola desça quase em linha reta, e em velocidades da ordem de 70 km/h. Popularizado na década de 1980 pela equipe brasileira, especialmente pelo ex-jogador Bernard Rajzman, ele hoje é considerado ultrapassado, e já não é mais empregado em competições internacionais.

Saque com efeito: denominado em inglês "spin serve", trata-se de um saque em que a bola ganha velocidade ao longo da trajetória, ao invés de perdê-la, graças a um efeito produzido dobrando-se o pulso no momento do contato.

Saque flutuante ou saque sem peso: saque em que a bola é tocada apenas de leve no momento de contato, o que faz com que ela perca velocidade repentinamente e sua trajetória se torne imprevisível.

Viagem ao fundo do mar: saque em que o jogador lança a bola, faz a aproximação em passadas como no momento do ataque, e acerta-a com força em direção à quadra adversária. Supõe-se que este saque já existisse desde a década de 1960, e tenha chegado ao Brasil pelas mãos do jogador Feitosa. De todo modo, ele só se tornou popular a partir da segunda metade dos anos 1980.

Saque oriental: o jogador posta-se na linha de fundo de perfil para a quadra, lança a bola no ar e acerta-a com um movimento circular do braço oposto. O nome deste saque provém do fato de que seu uso contemporâneo restringe-se a algumas equipes de voleibol feminino da Ásia.
 
Passe
Também chamado recepção, o passe é o primeiro contato com a bola por parte do time que não está sacando e consiste, em última análise, em tentativa de evitar que a bola toque a sua quadra, o que permitiria que o adversário marcasse um ponto. Além disso, o principal objetivo deste fundamento é controlar a bola de forma a fazê-la chegar rapidamente e em boas condições nas mãos do levantador, para que este seja capaz de preparar uma jogada ofensiva.

O fundamento passe envolve basicamente duas técnicas específicas: a "manchete", em que o jogador empurra a bola com a parte interna dos braços esticados, usualmente com as pernas flexionadas e abaixo da linha da cintura; e o "toque", em que a bola é manipulada com as pontas dos dedos acima da cabeça.
Quando, por uma falha de passe, a bola não permanece na quadra do jogador que está na recepção, mas atravessa por cima da rede em direção à quadra da equipe adversária, diz-se que esta pessoa recebeu uma "bola de graça".

Manchete
É uma técnica de recepção realizada com as mãos unidas e os braços um pouco separados e estendidos, o movimento da manchete tem início nas pernas e é realizado de baixo para cima numa posição mais ou menos cômoda, é importante que a perna seja flexionada na hora do movimento, garantindo maior precisão e comodidade no movimento. Ela é usada em bolas que vem em baixa altura, e que não tem chance de ser devolvida com o toque.
É considerada um dos fundamentos da defesa, sendo o tipo de defesa do saque e de cortadas mais usado no jogo de voleibol. É uma das técnicas essenciais para o líbero mas também é empregada por alguns levantadores para uma melhor colocação da bola para o atacante.

Levantamento
O levantamento é normalmente o segundo contato de um time com a bola. Seu principal objetivo consiste em posicioná-la de forma a permitir uma ação ofensiva por parte da equipe, ou seja, um ataque.

A exemplo do passe, pode-se distinguir o levantamento pela forma como o jogador executa o movimento, ou seja, como "levantamento de toque" e "levantamento de manchete". Como o primeiro usualmente permite um controle maior, o segundo só é utilizado quando o passe está tão baixo que não permite manipular a bola com as pontas dos dedos, ou no voleibol de praia, em que as regras são mais restritas no que diz respeito à infração de "carregar".

Também costuma-se utilizar o termo "levantamento de costas", em referência à situação em que a bola é lançada na direção oposta àquela para a qual o levantador está olhando.

Quando o jogador não levanta a bola para ser atacada por um de seus companheiros de equipe, mas decide lançá-la diretamente em direção à quadra adversária numa tentativa de conquistar o ponto rapidamente, diz-se que esta é uma "bola de segunda".

Ataque
O ataque é, em geral, o terceiro contato de um time com a bola. O objetivo deste fundamento é fazer a bola aterrissar na quadra adversária, conquistando deste modo o ponto em disputa. Para realizar o ataque, o jogador dá uma série de passos contados ("passada"), salta e então projeta seu corpo para a frente, transferindo deste modo seu peso para a bola no momento do contato.


O voleibol contemporâneo envolve diversas técnicas individuais de ataque:

Ataque do fundo: ataque realizado por um jogador que não se encontra na rede, ou seja, por um jogador que não ocupa as posições 2-4. O atacante não pode pisar na linha de três metros ou na parte frontal da quadra antes de tocar a bola, embora seja permitido que ele aterrisse nesta área após o ataque.

Diagonal ou Paralela: indica a direção da trajetória da bola no ataque, em relação às linhas laterais da quadra. Uma diagonal de ângulo bastante pronunciado, com a bola aterrissando na zona frontal da quadra adversária, é denominada "diagonal curta".

Cortada ou Remate: refere-se a um ataque em que a bola é acertada com força, com o objetivo de fazê-la aterrizar o mais rápido possível na quadra adversária. Uma cortada pode atingir velocidades de aproximadamente 200 km/h.

Largada: refere-se a um ataque em que jogador não acerta a bola com força, mas antes toca-a levemente, procurando direcioná-la para uma região da quadra adversária que não esteja bem coberta pela defesa.

Explorar o bloqueio: refere-se a um ataque em que o jogador não pretende fazer a bola tocar a quadra adversária, mas antes atingir com ela o bloqueio oponente de modo a que ela, posteriormente, aterisse em uma área fora de jogo.

Ataque sem força: o jogador acerta a bola mas reduz a força e conseqüentemente sua aceleração, numa tentativa de confundir a defesa adversária.

Bola de xeque: refere-se à cortada realizada por um dos jogadores que está na rede quando a equipe recebe uma "bola de graça" (ver passe, acima).

Bloqueio
O bloqueio refere-se às ações executadas pelos jogadores que ocupam a parte frontal da quadra (posições 2-3-4) e que têm por objetivo impedir ou dificultar o ataque da equipe adversária. Elas consistem, em geral, em estender os braços acima do nível da rede com o propósito de interceptar a trajetória ou diminuir a velocidade de uma bola que foi cortada pelo oponente.
Denomina-se "bloqueio ofensivo" à situação em que os jogadores têm por objetivo interceptar completamente o ataque, fazendo a bola permanecer na quadra adversária. Para isto, é necessário saltar, estender os braços para dentro do espaço aéreo acima da quadra adversária e manter as mãos viradas em torno de 45-60° em direção ao punho. Um bloqueio ofensivo especialmente bem executado, em que bola é direcionada diretamente para baixo em uma trajetória praticamente ortogonal em relação ao solo, é denominado "toco".
Um bloqueio é chamado, entretanto, "defensivo" se tem por objetivo apenas tocar a bola e deste modo diminuir a sua velocidade, de modo a que ela possa ser melhor defendida pelos jogadores que se situam no fundo da quadra. Para a execução do bloqueio defensivo, o jogador reduz o ângulo de penetração dos braços na quadra adversária, e procura manter as palmas das mãos voltadas em direção à sua própria quadra.

O bloqueio também é classificado, de acordo com o número de jogadores envolvidos, em "simples", "duplo" e "triplo".

Defesa
A defesa consiste em um conjunto de técnicas que têm por objetivo evitar que a bola toque a quadra após o ataque adversário. Além da manchete e do toque, já discutidos nas seções relacionadas ao passe e ao levantamento, algumas das ações específicas que se aplicam a este fundamento são:
Peixinho: o jogador atira-se no ar, como se estivesse mergulhando, para interceptar uma bola, e termina o movimento sob o próprio abdômen.
Rolamento: o jogador rola lateralmente sobre o próprio corpo após ter feito contato com a bola. Esta técnica é utilizada, especialmente, para minimizar a possibilidade de contusões após a queda que é resultado da força com que uma bola fora cortada pelo adversário.
Martelo: o jogador acerta a bola com as duas mãos fechadas sobre si mesmas, como numa oração. Esta técnica é empregada, especialmente, para interceptar a trajetória de bolas que se encontram a uma altura que não permite o emprego da manchete, mas para as quais o uso do toque não é adequado, pois a velocidade é grande demais para a correta manipulação com as pontas dos dedos.
 
O Libero
O líbero é um atleta especializado nos fundamentos que são realizados com mais freqüência no fundo da quadra, isto é, recepção e defesa. Esta função foi introduzida pela FIVB em 1998, com o propósito de permitir disputas mais longas de pontos e tornar o jogo deste modo mais atraente para o público. Um conjunto específico de regras se aplica exclusivamente a este jogador.
O líbero deve utilizar uniforme diferente dos demais, não pode ser capitão do time, nem atacar, bloquear ou sacar. Quando a bola não está em jogo, ele pode trocar de lugar com qualquer outro jogador sem notificação prévia aos árbitros, e suas substituições não contam para o limite que é concedido por set a cada técnico.
Por fim, o líbero só pode realizar levantamentos de toque do fundo da quadra. Caso esteja pisando sobre a linha de três metros ou sobre a área por ela delimitada, deverá executar somente levantamentos de manchete, pois se o fizer de toque por cima (pontas dos dedos) o ataque deverá ser executado com a bola abaixo do bordo superior da rede.





sábado, 10 de abril de 2010

Apostila de Psicologia (1)




A PSICOLOGIA OU AS PSICOLOGIAS



Ciência e Senso comum

Quantas vezes, no nosso dia-a-dia, ouvimos o termo psicologia? Qualquer um entende um pouco dela. Poderíamos até mesmo dizer que “de psicológico e de louco todo mundo tem um pouco”. O dito popular não bem este (“de médico e de louco todo mundo tem um pouco”), mas parece servir aqui perfeitamente. As pessoas em geral têm a “sua psicologia”.
Usamos o termo psicologia, no nosso cotidiano, com vários sentidos. Por exemplo, quando falamos do poder de persuasão do vendedor, dizemos que ele usa de “psicologia” para vender seu produto; quando nos referimos à jovem estudante que usa seu poder de sedução para atrair o rapaz, falamos que ela usa de “psicologia”; e quando procuramos aquele amigo, que está sempre disposto a ouvir nossos problemas, dizemos que ele tem “psicologia” para entender as pessoas.
Será essa a psicologia dos psicólogos? Certamente não. Essa psicologia, usada no cotidiano pelas pessoas em geral, é denominada de psicologia do senso comum. Mas nem por isso deixa de ser uma psicologia. O que estamos querendo dizer é que as pessoas, normalmente, têm um domínio, mesmo que pequeno e superficial, do conhecimento acumulado pela Psicologia científica, o que lhes permite explicar ou compreender seus problemas cotidianos de um ponto de vista psicológico.

O senso comum: conhecimento e realidade

Existe um domínio da vida que pode ser entendido como vida por excelência: é a vida do cotidiano. É no cotidiano que tudo flui, que as coisas acontecem, que nos sentimos vivos, que sentimos a realidade. Neste instante estou lendo um livro de Psicologia, logo mais estarei numa sala de aula fazendo uma prova e depois irei ao cinema. Enquanto isso, tenho sede e tomo um refrigerante na cantina da escola; sinto um sono irresistível e preciso de muita força de vontade para não dormir em plena aula; lembro-me de que havia prometido chegar cedo para o almoço. Todos esses acontecimentos denunciam que estamos vivos. Já a ciência é uma atividade eminentemente reflexiva. Ela procura compreender, elucidar e alterar esse cotidiano, a partir de seu estudo sistemático.
Quando fazemos ciência, baseamo-nos na realidade cotidiana e pensamos sobre ela. Afastamo-nos dela para refletir e conhecer além de suas aparências. O cotidiano e o conhecimento científico que temos da realidade aproximam-se e se afastam: aproximam-se porque a ciência se refere ao real; afastam-se porque a ciência abstrai a realidade para compreendê-la melhor, ou seja, a ciência afasta-se da realidade, transformando-a em objeto de investigação – o que permite a construção do conhecimento científico sobre o real.
Para compreender isso melhor, pense na abstração (no distanciamento e trabalho mental) que Newton teve de fazer para, partindo da fruta que caía da árvore (fato do cotidiano), formular a lei da gravidade (fato científico).
Ocorre que, mesmo o mais especializado dos cientistas, quando sai do seu laboratório, está submetido à dinâmica do cotidiano, que cria suas próprias “teorias” a partir das teorias científicas, seja como forma de “simplificá-las” para o uso no dia-a-dia, ou como sua maneira peculiar de interpretar fatos, a despeito das considerações feitas pela ciência. Todos nós – estudantes, psicólogos, físicos, artistas, operários, teólogos – vivemos a maior parte do tempo esse cotidiano e as suas teorias, isto é, aceitamos as regras do seu jogo.
O fato é que a dona de casa, quando usa a garrafa térmica para manter o café quente, sabe por quanto tempo ele permanecerá razoavelmente quente, sem fazer nenhum cálculo complicado e, muitas vezes, desconhecendo completamente as leis da termodinâmica. Quando alguém em casa reclama de dores no fígado, ela faz um chá de boldo, que é uma planta medicinal já usada pelos avós de nossos avós, sem, no entanto, conhecer o princípio ativo de suas folhas nas doenças hepáticas e sem nenhum estudo farmacológico. E nós mesmos, quando precisamos atravessar uma avenida movimentada, com o tráfego de veículos em alta velocidade, sabemos perfeitamente medir a distância e a velocidade do automóvel que vem em nossa direção. Até hoje não conhecemos ninguém que usasse máquina de calcular ou fita métrica para essa tarefa. Esse tipo de conhecimento que vamos acumulando no nosso cotidiano é chamado de senso comum. Sem esse conhecimento intuitivo, espontâneo, de tentativas e erros, a nossa vida no dia-a-dia seria muito complicada.
A necessidade de acumularmos esse tipo de conhecimento espontâneo parece-nos óbvia. Imagine termos de descobrir diariamente que as coisas tendem a cair, graças ao efeito da gravidade; termos de descobrir diariamente que algo atirado pela janela tende a cair e não a subir; que um automóvel em velocidade vai se aproximar rapidamente de nós e que, para fazer um aparelho eletrodoméstico funcionar, precisamos de eletricidade.
O senso comum, na produção desse tipo de conhecimento, percorre um caminho que vai do hábito à tradição, a qual, quando estabelecida, passa de geração para geração. Assim aprendemos com nossos pais a atravessar uma rua, a fazer o liquidificador funcionar, a plantar alimentos na época e de maneira correta, a conquistar a pessoa que desejamos e assim por diante.
E é nessa tentativa de facilitar o dia-a-dia que o senso comum produz suas próprias “teorias”; na realidade, um conhecimento que, numa interpretação livre, poderíamos chamar de teorias médicas, físicas, psicológicas, etc.

Senso-comum: uma visão de mundo

Esse conhecimento do senso comum, além de sua produção característica, acaba por se apropriar, de uma maneira muito singular, de conhecimentos produzidos pelos outros setores da produção do saber humano. O senso comum mistura e recicla esses outros saberes, muito mais especializados, e os reduz a um tipo de teoria simplificada, produzindo uma determinada visão de mundo.
O que estamos querendo mostrar a você é que o senso comum integra, de um modo precário (mas é esse o seu modo), o conhecimento humano. É claro que isto não ocorre muito rapidamente. Leva um certo tempo para que o conhecimento mais sofisticado e especializado seja absorvido pelo senso comum, e nunca o é totalmente. Quando utilizamos termos como “rapaz complexado”, “menina histérica”, “ficar neurótico”, estamos usando termos definidos pela Psicologia científica. Não nos preocupamos em definir as palavras usadas e nem por isso deixamos de ser entendidos pelo outro. Podemos até estar muito próximos do conceito científico mas, na maioria das vezes, nem sabemos. Esses são exemplos da apropriação que o senso comum faz da ciência.

Áreas do conhecimento

Somente esse tipo de conhecimento, porém, não seria suficiente para as exigências de desenvolvimento da humanidade. O homem, desde os tempos primitivos, foi ocupando cada vez mais espaço neste planeta, e somente esse conhecimento intuitivo seria muito pouco para que ele dominasse a Natureza em seu próprio proveito. Os gregos, por volta do século 4 a.C., já dominavam complicados cálculos para resolver seus problemas agrícolas, arquitetônicos, navais, etc. Era uma questão de sobrevivência. Com o tempo, esse tipo de conhecimento foi-se especializando cada vez mais, até atingir o nível de sofisticação que permitiu ao homem atingir a Lua. A este tipo de conhecimento, que definiremos com mais cuidado logo adiante, chamamos de ciência.
Mas o senso comum e a ciência não são as únicas formas de conhecimento que o homem possui para descobrir e interpretar a realidade.
Povos antigos, e entre eles cabe sempre mencionar os gregos, preocuparam-se com a origem e com o significado da existência humana. As especulações em torno desse tema formaram um corpo de conhecimentos denominado filosofia. A formulação de um conjunto de pensamentos sobre a origem do homem, seus mistérios, princípios morais, forma um outro corpo de conhecimento humano, conhecido como religião. No Ocidente, um livro muito conhecido traz as crenças e tradições de nossos antepassados e é para muitos um modelo de conduta: a Bíblia. Esse livro é o registro do conhecimento religioso judaico-cristão. Um outro livro semelhante é o livro sagrado dos hindus: Livros dos Vedas. Veda, em sânscrito (antiga língua clássica da Índia), significa conhecimento.
Por fim, o homem, já desde a sua pré-história, deixou marcas de sua sensibilidade nas paredes das cavernas, quando desenhou a sua própria figura e a figura da caça, criando uma expressão de conhecimento que traduz a emoção e a sensibilidade. Denominamos arte a esse tipo de conhecimento.
Arte, religião, filosofia, ciência e senso comum são domínios do conhecimento humano.

A Psicologia Científica

Foi preciso definir o senso comum, para que o leitor pudesse demarcar o campo de atuação de cada Psicologia sem confundi-las.
Entretanto a tarefa de definir a Psicologia como ciência é bem mais árdua e complicada. Comecemos por definir o que entendemos por ciência (que também não é simples), para depois explicarmos por que a Psicologia é hoje considerada uma de suas áreas.

O que é Ciência

A ciência compõe-se de um conjunto de conhecimento sobre fatos ou aspectos de uma realidade (objeto de estudo), expresso por meio de uma linguagem precisa e rigorosa. Esses conhecimentos devem ser obtidos de maneira programada, sistemática e controlada, para que se permita a verificação de sua validade. Assim, podemos apontar o objeto dos diversos ramos da ciência e saber exatamente como determinado conteúdo foi construído, possibilitando a reprodução da experiência. Dessa forma, o saber pode ser transmitido, verificado, utilizado e desenvolvido.
Essa característica da produção científica possibilita sua continuidade: um novo conhecimento é produzido sempre a partir de algo anteriormente desenvolvido. Negam-se, reafirmam-se, descobrem-se novos aspectos, e assim a ciência avança. Nesse sentido, a ciência caracteriza-se como um processo.
Penso no desenvolvimento do motor movido a álcool hidratado. Ele nasceu de uma necessidade concreta (crise do petróleo) e foi planejado a partir do motor a gasolina, com a alteração de poucos componentes deste. No entanto, os primeiros automóveis movidos a álcool apresentaram muitos problemas, como o seu mau funcionamento nos dias frios. Apesar disso, esse tipo de motor foi-se aprimorando.
A ciência tem ainda uma característica fundamental: ela aspira à objetividade. Suas conclusões devem ser passíveis de verificação e isentas de emoção, para, assim, tornarem-se válidas para todos.
Objeto específico, linguagem rigorosa, métodos e técnicas específicas, processo cumulativo do conhecimento, objetividade fazem da ciência uma forma de conhecimento que supera em muito o conhecimento espontâneo do senso comum. Esse conjunto de características é o que permite que denominemos científico a um conjunto de conhecimentos.

Objeto de estudo da Psicologia

Como dissemos anteriormente, um conhecimento, para ser considerado científico, requer um objeto específico de estudo. O objeto da Astronomia são os astros, e o objeto da Biologia são os seres vivos. Essa classificação bem geral demonstra que é possível tratar o objeto dessas ciências com uma certa distância, ou seja, é possível isolar o objeto de estudo. No caso da Astronomia, o cientista observador está, por exemplo, num observatório, e o astro observado, a anos luz de distância de seu telescópio. Esse cientista não corre o risco de confundir-se com o fenômeno que está estudando.
O mesmo não ocorre com a Psicologia, que, como a Antropologia, a Economia, a Sociologia e todas as ciências humanas, estuda o homem.
Certamente, esta divisão é ampla demais e apenas coloca a Psicologia entre as ciências humanas. Qual é, então, o objeto específico de estudo da Psicologia?
Se dermos a palavra a um psicólogo comportamentalista, ele dirá: “O objeto de estudo da Psicologia é o comportamento humano”. Se a palavra for dada a um psicólogo psicanalista, ele dirá: “O objeto de estudo da Psicologia é o inconsciente”. Outros dirão que é a consciência humana, e outros, ainda, a personalidade.

Diversidade de objetos da Psicologia

A diversidade de objetos da Psicologia é explicada pelo fato deste campo do conhecimento ter-se constituído como área do conhecimento científico só muito recentemente (final do século 19), a despeito de existir há muito tempo na Filosofia enquanto preocupação humana. Esse fato é importante, já que a ciência se caracteriza pela exatidão de sua construção teórica, e, quando uma ciência é muito nova, ela não teve tempo ainda de apresentar teorias acabadas e definitivas, que permitam determinar com maior precisão seu objeto de estudo.
Um outro motivo que contribui para dificultar uma clara definição de objeto de Psicologia é o fato de o cientista – o pesquisador – confundir-se com o objeto a ser pesquisado. No sentido mais amplo, o objeto de estudo da Psicologia é o homem, e neste caso o pesquisador está inserido na categoria a ser estudada. Assim, a concepção de homem que o pesquisador traz consigo “contamina” inevitavelmente a sua pesquisa em Psicologia. Isso ocorre porque há diferentes concepções de homem entre os cientistas (na medida em que estudos filosóficos e teológicos e mesmo doutrinas políticas acabam definindo o homem à sua maneira, e o cientista acaba necessariamente se vinculando a uma destas crenças). É o caso da concepção de homem natural, formulada pelo filósofo francês Rousseau, que imagina que o homem era puro e foi corrompido pela sociedade, e que cabe então ao filósofo reencontrar essa pureza perdida. Outros vêem o homem como ser abstrato, com características definidas e que não mudam, a despeito das condições sociais a que esteja submetido. Nós, autores deste livro, vemos esse homem como ser datado, determinado pelas condições históricas e sociais que o cercam.
Na realidade, este é um “problema” enfrentado por todas as ciências humanas, muito discutido pelos cientistas de cada área até agora sem perspectiva de solução. Conforme a definição de homem adotada, teremos uma concepção de objeto que combine com ela. Como, neste momento, há uma riqueza de valores sociais que permitem várias concepções de homem, diríamos simplificadamente que, no caso da Psicologia, esta ciência estuda os “diversos homens”, concebidos pelo conjunto social. Assim, a Psicologia hoje se caracteriza por uma diversidade de objetos de estudo.
Por outro lado, essa diversidade de objetos de estudos justifica-se porque os fenômenos psicológicos são tão diversos, que não podem ser acessíveis ao mesmo nível de observação e, portanto, não podem ser sujeitos aos mesmos padrões de descrição, medida, controle e interpretação. O objeto da Psicologia deveria ser aquele que reunisse condições de aglutinar uma ampla variedade de fenômenos psicológicos. Ao estabelecer o padrão de descrição, medida, controle e interpretação, o psicólogo está também estabelecendo um determinado critério de seleção de fenômenos psicológicos e assim definindo um objeto.
Esta situação leva-nos a questionar a caracterização da Psicologia como ciência e a postular que no momento não existe uma psicologia, mas Ciências psicológicas embrionárias e em desenvolvimento.

A subjetividade como objeto da Psicologia

A identidade da Psicologia é o que a diferencia dos demais ramos das ciências humanas, e pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca o homem de maneira particular. Assim, cada especialidade – a Economia, a Política, a História etc. – trabalha essa matéria-prima de maneira particular, construindo conhecimentos distintos e específicos a respeito dela. A Psicologia colabora com o estudo da subjetividade: é essa a sua forma particular, específica de contribuição para a compreensão da totalidade da vida humana.
Nossa matéria-prima, portanto, é o homem em todas as suas expressões, as visíveis (nosso comportamento) e as invisíveis (nossos sentimentos), as singulares (porque somos o que somos) e as genéricas (porque somos todos assim) – é o homem-corpo, homem-pensamento, homem-afeto, homem-ação e tudo isso está sintetizado no termo subjetividade.
A subjetividade é a síntese singular e individual que cada um de nós via constituindo conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando as experiências da vida social e cultural; é uma síntese que nos identifica, de um lado, por ser única, e nos iguala, de outro lado, na medida em que os elementos que a constituem são experenciados no campo comum da objetividade social. Esta síntese – a subjetividade – é o mundo de idéias, significados e emoções construído internamente pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais.
O mundo social e cultural, conforme via sendo experenciado por nós, possibilita-nos a construção de um mundo interior. São diversos fatores que se combinam e nos levam a uma vivência muito particular. Nós atribuímos sentido a essas experiências e vamos nos constituindo a cada dia.
A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, sonhar, amar e fazer de cada um. É o que constitui o nosso modo de ser: sou filho de japoneses e militante de um grupo ecológico, detesto Matemática, adoro samba e black music, pratico ioga, tenho vontade mas não consigo ter uma namorada. Meu melhor amigo é filho de descendentes de italianos, primeiro aluno da classe em Matemática, trabalha e estuda, é corinthiano fanático, adora comer sushi e navegar pela internet. Ou seja, cada qual é o que é: sua singularidade.
Entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao indivíduo. Ele a constrói aos poucos, apropriando-se do material do mundo social e cultural, e faz isso ao mesmo tempo em que atua sobre este mundo, ou seja, é ativo na sua construção. Criando e transformando o mundo (externo), o homem constrói e transforma a si próprio.
Um mundo objetivo, em movimento, porque seres humanos o movimentam permanentemente com suas intervenções; um mundo subjetivo em movimento porque os indivíduos estão permanentemente se apropriando de novas matérias-primas para constituírem suas subjetividades.
De um certo modo, podemos dizer que a subjetividade não só é fabricada, produzida, moldada, mas também é automoldável, ou seja, o homem pode promover novas formas de subjetividade, recusando-se ao assujeitamento e à perda de memória imposta pela fugacidade da informação; recusando a massificação que exclui e estimatiza o diferente, a aceitação social condiciona ao consumo, a medicalização do sofrimento. Nesse sentido, retomamos a utopia que cada homem pode participar na construção do seu destino e de sua coletividade.
Por fim, podemos dizer que estudar a subjetividade, nos tempos atuais, é tentar compreender a produção de novos modos de ser, isto é, as subjetividades emergentes, cuja fabricação é social e histórica. O estudo dessas novas subjetividades vai desvendando as relações do cultural, do político, do econômico e do histórico na produção do mais íntimo e do mais observável no homem – aquilo que o captura, submete-o ou mobiliza-o para pensar e agir sobre os efeitos das formas de submissão da subjetividade (como dizia o filósofo francês Michel Foucault).
O movimento e a transformação são os elementos básicos de toda essa história. E aproveitamos para citar Guimarães Rosa, que em Grande Sertão: Veredas, consegue expressar, de moto muito adequado e rico, o que aqui vale a pena registrar: “O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam”.
Convidamos você a refletir um pouco sobre esse pensamento de Guimarães Rosa. As pessoas não estão sempre iguais. Ainda não foram terminadas. Na verdade, as pessoas nunca serão terminadas, pois estarão sempre se modificando. Mas por quê? Como? Simplesmente porque a subjetividade – este mundo interno construído pelo homem como síntese de suas determinações – não cessará de se modificar, pois as experiências sempre trarão novos elementos para renová-la.
Talvez você esteja pensando: mas eu acho que sou o que sempre fui – eu não me modifico! Por acompanhar de perto suas próprias transformações (não poderia ser diferente!), você pode não percebê-las e ter a impressão de ser como sempre foi. Você é o construtor da sua transformação e, por isso, ela pode passar despercebida, fazendo-o pensar que não se transformou. Mas você cresceu, mudou de corpo, de vontades, de gostos, de amigos, de atividades, afinou e desafinou, enfim, tudo em sua vida muda e, com ela, suas vivência subjetivas, seu conteúdo psicológico, sua subjetividade. Isso acontece com todos nós.
Bem, esperamos que você já tenha uma noção do que seja subjetividade e possamos, então, voltar a nossa discussão sobre o objeto da Psicologia.
A Psicologia, como já dissemos anteriormente, é um ramo das Ciências Humanas e a sua identidade, isto é, aquilo que a diferencia, pode ser obtida considerando-se que cada um desses ramos enfoca de maneira particular o objeto homem, construindo conhecimentos distintos e específicos a respeito dele. Assim, com o estudo da subjetividade, a Psicologia contribui para a compreensão da totalidade da vida humana.
É claro que a forma de se abordar a subjetividade, e mesmo a forma de concebê-la, dependerá da concepção de homem adotada pelas diferentes escolas psicológicas. No momento, pelo pouco desenvolvimento da Psicologia, essas escolas acabam formulando um conhecimento fragmentário de uma única e mesma totalidade – o ser humano: o seu mundo interno e as suas manifestações. A superação do atual impasse levará a uma Psicologia que enquadre esse homem como ser concreto e multideterminado. Esse é o papel de uma ciência crítica, da compreensão, da comunicação e do encontro do homem com o mundo em que vive, já que o homem que compreende a História (o mundo externo) também compreende a si mesmo (sua subjetividade), e o homem que compreende a si mesmo pode compreender o engendramento do mundo e criar novas rotas e utopias.
Algumas correntes da Psicologia consideram-na pertencente ao campo das Ciências do Comportamento e, outras, das Ciências Sociais. Acreditamos que o campo das Ciências Humanas é mais abrangente e condizente com a nossa proposta, que vincula a Psicologia à História, à Antropologia, à Economia, etc.

A Psicologia e o Misticismo

A Psicologia, como área da Ciência, vem se desenvolvendo na história desde 1875, quando Wilhelm Wundt (1832-1926) criou o primeiro Laboratório de Experimentos em Psicofisiologia, em Leipzig, na Alemanha. Esse marco histórico significou o desligamento das idéias psicológicas de idéias abstratas e espiritualista, que defendiam a existência de uma alma nos homens, a qual seria a sede da vida psíquica. A partir daí, a história da Psicologia é de fortalecimento de seu vínculo com os princípios e métodos científicos. A idéia de um homem autônomo, capaz de se responsabilizar pelo seu próprio desenvolvimento e pela sua vida, também vai se fortalecendo a partir desse momento.
Hoje, a Psicologia ainda não consegue explicar muitas coisas sobre o homem, pois é uma área da Ciência relativamente nova (com pouco mais de cem anos). Além disso, sabe-se que a Ciência não esgotará o que há para se conhecer, pois a realidade está em permanente movimento e novas perguntas surgem a cada dia, o homem está em movimento e em transformação, colocando também novas perguntas para a Psicologia. A invenção dos computadores, por exemplo, trouxe e trará mudanças em nossas formas de pensamento, em nossa inteligência, e a Psicologia precisará absorver essas transformações em seu quadro teórico.
Algum dos “desconhecimentos” da Psicologia têm levado os psicólogos a buscarem respostas em outros campos do saber humano. Com isso, algumas práticas não-psicológicas têm sido associadas às práticas psicológicas. O tarô, a astrologia, a quiromancia, a numerologia, entre outras práticas adivinhatórias e/ou místicas, têm sido associadas ao fazer e ao saber psicológico.
Estas não são práticas da Psicologia. São outras formas de saber – de saber sobre o humano – que não podem ser confundida com a Psicologia, pois:
- não são construídas no campo da Ciência, a partir do método e dos princípios científicos;
- estão em oposição aos princípios da Psicologia, que vê não só o homem como ser autônomo, que se desenvolve e se constitui a partir de sua relação com o mundo social e cultural, mas também o homem sem destino pronto, que constrói seu futuro ao agir sobre o mundo. As práticas místicas têm pressupostos opostos, pois nelas há a concepção de destino, da existência de forças que não estão no campo do humano e do mundo material.
A Psicologia, ao relacionar-se com esses saberes, deve ser capaz de enfrentá-los sem preconceitos, reconhecendo que o homem construiu muitos “saberes” em busca de sua felicidade. Mas é preciso demarcar nossos campos. Esses saberes não estão no campo da Psicologia, mas podem se tornar seu objeto de estudo.
É possível estudar práticas adivinhatórias e descobrir o que elas têm de eficiente, de acordo com os critérios científicos, e aprimorar tais aspectos para um uso eficiente e racional. Nem sempre esses critérios científicos têm sido observados e alguns psicólogos acabam por usar tais práticas sem o devido cuidado e observação. Esses casos, seja daquele que usa a prática mística como acompanhamento psicológico, seja o do psicólogo que usa desse expediente sem critério científico comprovado, são previsto pelo código de ética dos psicólogos e, por isso, passíveis de punição. No primeiro caso, como prática de charlatanismo e, no segundo, como desempenho inadequado da profissão.
Entretanto, é preciso ponderar que esse campo fronteiriço entre a Psicologia científica e a especulação mística deve ser tratado com o devido cuidado. Quando se trata de pessoa, psicóloga ou não, que decididamente usa do expediente das práticas místicas como forma de tirar proveito pecuniário ou de qualquer outra ordem, prejudicando terceiros, temos um caso de polícia e a punição salutar. Mas muitas vezes não é possível caracterizar a atuação daqueles que se utilizam dessas práticas de forma tão clara. Nestes casos, não podemos tornar absoluto o conhecimento científico como o “conhecimento por excelência” e dogmatizá-lo a ponto de correr o risco de criar um tribunal semelhante ao da Santa Inquisição. É preciso reconhecer que pessoas que acreditam em práticas adivinhatórias ou místicas têm o direito de consultar e de serem consultadas, e também temos de reconhecer, nós cientistas, que não sabemos muita coisa sobre o psiquismo humano e que, muitas vezes, novas descobertas seguem estranhos e insondáveis caminhos. O verdadeiro cientista deve ter os olhos abertos para o novo.
Enfim, nosso alerta aqui vai em dois sentidos:
- Não se deve misturar a Psicologia com práticas adivinhatórias ou místicas que estão baseadas em pressupostos diversos e opostos ao da Psicologia.
- “Mente é como paraquedas: melhor aberta”. É preciso estar aberto para o novo, atento a novos conhecimentos que, tendo sido estudados no âmbito da Ciência, podem trazer novos saberes, ou seja, novas respostas para perguntas ainda não respondidas.
A Ciência, como uma das formas de saber do homem, tem seu campo de atuação com métodos e princípios próprios, mas, como forma de saber, não está pronto e nunca estará. A Ciência é, na verdade um processo permanente de conhecimento do mundo, um exercício de diálogo entre o pensamento humano e a realidade, em todos os seus aspectos. Nesse sentido, tudo o que ocorre com o homem é motivo de interesse para a Ciência, que deve aplicar seus princípios e métodos para construir respostas.


Origem e evolução da Psicologia da Educação

Psicologia da Educação – propósito:
 Esforço da aplicação de utilização dos princípios, das explicações e dos métodos da psicologia científica.
 Tentativa de melhorar as práticas educativas em geral, principalmente a educação escolar.
 Elaborar aplicações adequadas para o planejamento e o desenvolvimento dessas práticas.

- Crença: educação e ensino podem melhorar com a utilização correta dos conhecimentos psicológicos.

A psicologia científica e as origens da psicologia da educação
 Último quarto do séc XIX – psicologia começa a distanciar-se da filosofia – surgindo a psicologia científica nos primeiros anos do séc XX.
 A teoria educativa também luta para imbuir-se de uma fundamentação científica.
 Psicologia – fonte de informação para a elaboração de uma teoria educativa de fundamento científico, que permite melhorar o ensino e intervir sobre os problemas que se apresentam na escolarização generalizada.
 Primeira década do séc XX - a psicologia da educação nasce das tentativas da psicologia científica e do resultado das expectativas depositadas a partir do mundo da educação.
 Começo do séc XX – a psicologia da educação identifica-se com as tentativas de utilizar e de aplicar na educação todos os conhecimentos potencialmente relevantes proporcionados pelas pesquisas desenvolvidas no âmbito da psicologia científica.

Três áreas se sobressaem:
- o estudo e a medida das diferenças individuais e a elaboração de testes;
- análise dos processos de aprendizagem;
- psicologia da criança ou desenvolvimento infantil.


- Duas teorias que continuam tendo influência ainda hoje sobre a educação:
 Teoria genética de Jean Piaget
 Teoria sociocultural de Lev S. Vygotsky.

A psicologia da educação depois de quase 100 anos de história, ainda não pode satisfazer de maneira adequada as expectativas que foram-lhe depositadas e que, de alguma maneira, continuam sendo vigentes: outorgar uma base científica à teoria educativa e oferecer propostas concretas para melhorar a educação e o ensino.


Referências Bibliográficas:

BOCK, Ana. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva, 2002.
COLL SALVADOR, César. Psicologia da Educação. Porto Alegre: Artes Médicas. 1999.


O OBJETO DE ESTUDO E OS CONTEÚDOS DA PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

Pode-se afirmar que o objeto de estudo da psicologia da educação está constituído de processos de mudança de comportamento que se produzem nas pessoas como consequência de sua participação em atividade educativas. Com os comentários que apresentaremos, pretende-se ampliar essa breve definição e valorizar com maior precisão o seu alcance e suas implicações.
Essa definição centra o seu interesse em alguns tipos de mudanças muitos especiais: as que consistem na – ou que se podem relacionar com - a participação das pessoas em atividades ou situações educativas. Isso significa que é imprescindível considerar as características dessas situações para poder estudar adequadamente tais processos.
A definição proposta tira qualquer dúvida a respeito da necessidade de uma aproximação multidisciplinar ao estudo dos fenômenos educativos. A complexidade intrínseca desses fenômenos, a multiplicidade de dimensões e de aspectos presentes, faz com que o seu estudo necessite do auxílio de diferentes perspectivas disciplinarias. Evidentemente, não se trata de decompor os fenômenos educativos nas suas partes constituintes para atribuir a análise de cada parte a uma disciplina diferente. Adotar uma aproximação multidisciplinar no estudo do fenômenos educativos significa, mais precisamente, abordá-los como um todo, isto é, não deixando que se perca a sua identidade com tais fenômenos, explorando-os de maneira sucessiva e simultânea com a ajuda dos instrumentos metodológicos e conceituais proporcionados pelas diferentes disciplinas educativas, tentando relacionar e integrar os resultados dessas indagações em interpretações em conjunto. No âmbito desta tarefa global, a psicologia da educação responsabiliza-se especificamente pelo estudo das mudanças de comportamento – incluindo os processos psicológicos subjacentes – que as pessoas experimentam como uma consequência da sua participação em atividades educativas, da sua natureza e características, dos fatores que lhes facilitam, dos que lhes dificultam ou obstaculizam, e das consequências que trazem ao desenvolvimento e à socialização dos seres humanos.
A psicologia da educação está comprometida, da mesma maneira que as outras disciplinas (a didática, a sociologia da educação, a sociolinguística da educação, a etnografia da educação, a filosofia da educação, a antropologia da educação, etc.), e estritamente coordenada na elaboração de uma teoria da educação de base científica e na configuração de uma prática adequada. Esse compromisso outorga à psicologia da educação o caráter de disciplina aplicada e a induz a abordar o seu objeto de estudo com uma tripla finalidade ou dimensão: uma dimensão teórica ou explicativa, que procura a elaboração de modelos interpretativos dos processos de mudanças estudados; uma dimensão tecnológica ou projetiva com o objetivo de contribuir no planejamento de situações ou atividades educativas capazes de induzir ou de provocar determinados processos e tipos de mudança nas pessoas que dessas participam; e uma dimensão técnica ou prática, orientada à intervenção e à resolução de problemas concretos que surgem na preparação e no desenvolvimento de atividades educativas. A abordagem do objeto de estudo com essa tripla finalidade é o que precisamente confere á psicologia da educação o seu caráter aplicado.
A psicologia da educação centra seus esforços sobretudo no estudo dos processos de mudança de comportamento relacionados com os processos escolares de ensino e de aprendizagem e, portanto, as suas contribuições situam-se majoritariamente nesse campo. Essa tendência, porém, foi sendo corrigida durante as últimas duas ou três décadas; isso justifica que, desde a perspectiva da psicologia da educação, foram apresentadas – e continuam-se apresentando – contribuições substanciais relacionadas com outras formas de práticas educativas, como as que ocorrem no âmbito da família ou as que utilizam a televisão como veículo.
Se tomarmos como ponto de partida o objeto de estudo proposto, podemos identificar os dois grandes blocos de conteúdos ou de temas dos quais se ocupa a psicologia da educação:

a) De um lado, os que se referem aos processos de mudança de comportamento que se produzem nas pessoas como resultado de sua participação em situações educativas;
b) De outro, os fatores, as variáveis e as dimensões das situações educativas que se relacionam diretamente com os processos de mudança comentados anteriormente e que contribuem para explicar a sua orientação e as suas características.
Quanto aos primeiros, a psicologia da educação dedica-se fundamentalmente a estudar os processos de mudança de comportamento vinculados a processos de aprendizagem, de desenvolvimento e de socialização. A natureza desses processos de mudança, as teorias e os modelos que os explicam ou que tentam explicá-los, e sobretudo as relações que mantêm entre as diversas dimensões e os diversos aspectos implicados (cultura, desenvolvimento, aprendizagem, educação, socialização, etc.), configuram um dos núcleos mais importantes e de maior interesse da psicologia da educação.
No segundo dos grandes blocos comentados (o referente aos fatores, às variáveis ou às dimensões das situações educativas relacionados diretamente com os processos de mudança de comportamento), o panorama é sensivelmente mais complexo, já que se pode identificar tantas subpartes ou subnúcleos de conteúdos como tipos de práticas educativas. Os fatores, as variáveis ou as dimensões que se relacionam direta ou indiretamente com os processos de mudança de comportamento que a psicologia da educação estuda não são os mesmos – se citarmos somente dois exemplos óbvios – no caso das situações e atividades escolares de ensino e aprendizagem e no caso das situações e atividades educativas que ocorrem no âmbito da família. Disso deriva a importância de incluir, dentro da psicologia da educação, um capítulo sobre as características dos diferentes tipos de práticas educativas sobretudo das estão mais presentes na sociedade atual, e de explorar as suas repercussões no desenvolvimento e na socialização dos indivíduos.
Contudo, como já se destacou anteriormente, a psicologia da educação tem direcionado seus esforços prioritariamente No estudo das mudanças de comportamento relacionados com situações e atividades escolares de ensino e de aprendizagem; isso faz com que sejam precisamente, as proposições relativas a esta forma de prática educativa – a escolar – as que constituem a principal e maior parte dos conteúdos da psicologia da educação.

Referências Bibliográficas.

COLL SALVADOR, César. Psicologia da Educação. Porto Alegre: Artes Médicas. 1999.



A PSICOLOGIA NA EDUCAÇÃO

Em geral, comete-se o erro de pensar que a aprendizagem começa apenas na idade escolar. Conseqüentemente, parte-se do princípio de que os ensinamentos que ocorrem na escola principiam na sala de aula. Na verdade, muitos anos antes de entrar na escola, a criança já vem desenvolvendo hipóteses e construindo um conhecimento sobre o mundo, o mesmo mundo que as matérias ditas escolares procuram interpretar. No início da alfabetização, por exemplo, ela já tem uma concepção de escrita, uma idéia a respeito do que se pode ou não escrever, uma concepção sobre o sistema de representação gráfica. Coisa semelhante ocorre com a Matemática. Antes de entrar na escola, a criança, já se deparou inúmeras vezes com a noção de quantidade, realizando, inclusive, operações de cálculo. Um conjunto de noções e de conceitos já se encontra, portanto, estabelecido.
Em resumo, a tarefa de ensinar, em nossa sociedade, não está centrada apenas nas mãos de professores. O aluno não aprende apenas na escola, mas também através da família, dos amigos, de pessoas que ele considera significativas, dos meios de comunicação de massa, das experiências do cotidiano, dos movimentos sociais. Entretanto, a escola é a instituição social que se apresenta como responsável pela educação sistemática das crianças, jovens e até mesmo de adultos.
No ambiente escolar a criança sofre uma transformação radical em sua forma de pensar. Antes de se entrar nela, os conhecimentos são assimilados de modo espontâneo, a partir da experiência direta da criança. Em sala de aula, ao contrário, existe uma intenção prévia de organizar situações que propiciem o aprimoramento dos processos de pensamento e da própria capacidade de aprender.
Daí a importância de se buscar maximizar esses resultados, colocando a serviço da educação e do ensino o conjunto dos conhecimentos psicológicos sobre as bases do desenvolvimento e da aprendizagem. Com eles, o professor estará em posição mais favorável para planejar sua ação.



Extraído de: DAVIS, Claudia; OLIVEIRA, Zilma de. A Psicologia na Educação. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1994.



CONCEPÇÕES DE DESENVOLVIMENTO: CORRENTES TÉORICAS E REPERCUSSÕES NA ESCOLA

As diversas teorias de desenvolvimento apresentadas a seguir apóiam-se em diferentes concepções do homem e do modo como ele chega a conhecer. Tais teorias, como em qualquer estudo científico dependem da visão de mundo existente em uma determinada situação histórica e evoluem conforme se mostram capazes ou incapazes de explicar a realidade.
A visão de desenvolvimento enquanto processo de apropriação pelo homem da experiência histórico-social é relativamente recente. Durante longos anos, o papel da interação de fatores internos e externos no desenvolvimento não era destacado. Enfatizava-se ora os primeiros ora os segundos. Os filósofos e os cientistas criaram, assim teorias ou abordagens denominadas inatistas – que salientam a importância dos fatores endógenos – e teorias ou abordagens chamadas ambientalistas – onde especial atenção se dá à ação do meio e da cultura sobre a conduta humana.
Cada uma dessas concepções será analisada em separado.

A concepção inatista

A natureza, dizem-no, é apenas o hábito. Que significa isso? Não há hábitos que só se adquirem pela força e não sufocam nunca a natureza? É o caso, por exemplo, do hábito das plantas, cuja direção vertical se perturba. Em se lhe desenvolvendo a liberdade, a planta conserva a inclinação que a obrigaram a tomar; mas a seiva não muda, com isto, sua direção primitiva; e se a planta continuar a vegetar, seu prolongamento voltará a ser vertical. O mesmo acontece com os homens (J.J. Rousseau, Emílio)

A concepção inatista parte do pressuposto de que os eventos que ocorrem após o nascimento não são essenciais e/ou importantes para o desenvolvimento. As qualidades e capacidades básicas de cada ser humano – sua personalidade, seus valores, hábitos e crenças, sua forma de pensar, suas reações emocionais e mesmo sua conduta social – já se encontrariam basicamente prontas e em sua forma final por ocasião do nascimento, sofrendo pouca diferenciação qualitativa e quase nenhuma transformação ao longo da existência. O papel do ambiente (e, portanto, da educação e do ensino) é tentar interferir o mínimo possível no processo de desenvolvimento espontâneo da pessoa.
As origens da posição inatista podem ser encontradas, de um lado, na Teologia: Deus, de um só ato, criou cada homem em sua forma definitiva. Após o nascimento, nada mais haveria a fazer, pois o bebê já teria em si os germes do homem que viria a ser. O destino individual de cada criança já estaria determinado pela “graça divina”.
De outro lado, a posição inatista apóia-se num entendimento errôneo de algumas contribuições importantes ao conhecimento biológico, tais como a proposta evolucionista de Darwin, a Embriologia e a Genética.
A evolução, para Darwin, biólogo inglês que viveu no século passado, resulta de mudanças graduais e cumulativas no desenvolvimento das espécies. Essas mudanças, por sua vez, decorrem de variações hereditárias que fornecem vantagens adaptativas em relação às condições ambientais prevalecentes. O papel do ambiente é bastante limitado. Cabe-lhe apenas determinar, dentre as possibilidades naturais de variação, quais são as mais adaptativas para a espécie, isto é, as que melhor permitem à espécie sobreviver num ambiente específico. Só os mais aptos de uma determinada espécie – aqueles capazes de se adaptar ao meio sobrevivem.
Aplicada ao desenvolvimento humano, essa teoria foi frequentemente mal interpretada. Ao servir de base para a posição inatista, não se levou em conta que o ambiente tem um impacto decisivo sobre o ciclo de vida dos membros de cada espécie, muito embora não possa produzir neles alterações que venham a ser transmitidas a futuras gerações. A teoria darwiniana acabou, assim, sendo erroneamente entendida como postulando aquilo que nunca pretendeu: que os fatores ambientais eram incapazes de exercer um efeito direto tanto na espécie quanto no organismo.
Em relação à espécie humana, deixou-se de lado a influência da experiência individual de cada pessoa; equiparou-se, consequentemente, o complexo comportamento sócio cultural do homem àquele que é típico de organismos inferiores, onde se observa pouca ou nenhuma diferenciação.
Os primeiros conhecimentos produzidos pela Embriologia também forneceram subsídios para as teorias inatistas. Na verdade, esses primeiros dados apontavam para sequências de desenvolvimento praticamente invariáveis que seriam, em grande parte, reguladas por fatores endógenos, ou seja, de origem interna. Supunha-se que o desenvolvimento intra-uterino ocorria em um ambiente fisiológico relativamente constante e isolado de estimulações externas. Mas o modelo fornecido pela Embriologia, quando projetado para a vida após o nascimento, mostrava-se inadequado: nele, a experiência individual não teria qualquer impacto sobre o organismo.
Por outro lado, dados mais recentes da Embriologia indicam que o ambiente interno tem um papel central no desenvolvimento do embrião, assim como o ambiente externo é fundamental para o desenvolvimento pós-natal. Não há, pois, bases empíricas ou teóricas que sirvam de apoio para a visão inatista no âmbito da Psicologia. Tal visão, no entanto, gerou uma idéia de homem que produziu uma abordagem rígida, autoritária e, sobretudo, pessimista para a educação das crianças e adolescentes. Como, na concepção inatista, o homem “já nasce pronto”, pode-se apenas aprimorar um pouco aquilo que ele é ou, inevitavelmente, virá a ser. Em consequência, não vale a pena considerar tudo o que pode ser feito em prol do desenvolvimento humano. O ditado popular “pau que nasce torto morre torto” expressa bem a concepção inatista, que ainda hoje aparece na escola, camuflada sob o disfarce das aptidões, da prontidão e do coeficiente de inteligência. Tal concepção gera preconceitos prejudiciais ao trabalho em sala de aula.

A concepção ambientalista


Fizemos um estudo da motivação da criança não reprimida e descobrimos mais do que podíamos usar. Nossa tarefa era preservá-la, fortificando a criança contra o desânimo. Introduzimos o desânimo tão cuidadosamente quanto introduzimos qualquer situação emocional, iniciando ao redor dos seis meses. Alguns dos brinquedos, em nossos cubículos com ar condicionado, são projetados para criar perseverança. Um trecho de uma melodia de uma caixa de música, ou um padrão de luzes faiscantes, é arranjado de maneira a seguir uma resposta apropriada, digamos, apertar uma campainha. Mais tarde, a campainha deverá ser apertada duas vezes. É possível construir um comportamento fantasticamente perseverante sem mostrar frustração ou raiva. Pode não surpreendê-lo saber que alguns dos nossos experimentos falharam: a resistência ao desânimo tornou-se quase estúpida ou patológica. Corre-se alguns riscos em trabalhos desse tipo, é claro. Felizmente, podemos reverter o processo e restaurar a criança ao nível satisfatório. (B.F. Skinner, Walden II)


Como se pode notar no trecho acima, a concepção ambientalista atribui imenso poder ao ambiente no desenvolvimento humano. O homem é concebido como um ser extremamente plástico, que desenvolve suas características em função das condições presentes no meio em que se encontra. Esta concepção deriva da corrente filosófica denominada empirismo, que enfatiza a experiência sensorial como fonte de conhecimento. Ainda segundo o empirismo, determinados fatores encontram-se associados a outros, de modo que é possível, ao se identificar tais associações, controlá-las pela manipulação.
Na Psicologia, o grande defensor da posição ambientalista é um norte-americano, B. F. Skinner. A teoria proposta por ele preocupa-se em explicar os comportamentos observáveis do sujeito, desprezando a análise de outros aspectos da conduta humana como o seu raciocínio, os seus desejos e fantasias, os seus sentimentos. Partindo de uma concepção de ciência que defende a necessidade de medir, comparar, testar, experimentar, prever e controlar eventos de modo a explicar o objeto de investigação, Skinner se propõe a construir uma ciência do comportamento.
Na concepção do comportamento defendida por Skinner e seus seguidores, o papel do ambiente é muito mais importante do que a maturação biológica. Na verdade, são os estímulos presentes numa dada situação que levam ao aparecimento de um determinado comportamento. Como isso ocorre?
Segundo os ambientalistas (ou comportamentalistas, também chamados de behavioristas, do inglês behavior = comportamento), os indivíduos buscam maximizar o prazer e minimizar a dor. Manipulando-se os elementos presentes no ambiente – que, por esta razão, são chamados de estímulos – é possível controlar o comportamento: fazer com que aumente ou diminua a frequência com que ele aparece; fazer com que ele desapareça ou só apareça em situações consideradas adequadas; fazer com que o comportamento se refine e aprimore etc. Daí o motivo pelo qual se atribui à concepção ambientalista uma visão do indivíduo enquanto ser extremamente reativo à ação do meio.
Mudanças no comportamento poder ser provocadas de diversas maneiras. Uma delas requer uma análise das consequências ou resultados que o mesmo produz no ambiente. As consequências positivas são chamadas de reforçamento e provocam um aumento na frequência com que o comportamento aparece. Por exemplo, se após arrumar os seus brinquedos (comportamento), a criança ouvir elogios de sua mãe (consequência positiva), ela procurará deixar os brinquedos arrumados mais vezes, porque estabeleceu uma associação entre esse comportamento e aquele de sua mãe. Já as consequências negativas recebem o nome de punição e levam a uma diminuição na frequência com que certos comportamentos ocorrem. Por exemplo, se cada vez que João quebrar uma vidraça ao jogar bola (comportamento), ele for obrigado a pagar pelo estrago (consequência negativa), ele passará a tomar mais cuidado ao jogar, diminuindo os estragos em janelas.
Quando um comportamento é absolutamente inadequado e se considera desejável eliminá-lo totalmente do repertório de comportamentos de um certo indivíduo, usa-se o procedimento dito de extinção. Nele o objetivo é quebrar o elo que se estabeleceu entre o comportamento visto como indesejável e determinadas consequências do mesmo. Para tanto, é preciso que se retire do ambiente as consequências que o mantém. Por exemplo, quando uma criança faz bagunça na sala de aula para chamar a atenção da professora, mas esta não dá mostras de que notou o comportamento da criança, é provável que a criança pare de fazer bagunça. Este comportamento foi extinto porque deixou de promover o aparecimento de determinadas consequências (atenção da professora).
Mais recentemente, outros teóricos afirmaram que o comportamento humano também se modifica em função da observação de como agem outras pessoas, que se tornam modelos a serem copiados. Quando os comportamentos dos modelos são reforçados, tende-se a imitá-los e quando são punidos, procura-se evitá-los. Observar um amiguinho chutar a bola de certa maneira e fazer gol, possivelmente fará com que a criança imite essa forma de chutar para obter o mesmo resultado.
Na visão ambientalista, a atenção de uma pessoa é, portanto, função das aprendizagens que realizou ao longo de sua vida, em contato com estímulos que reforçaram ou puniram seus comportamentos anteriores. No entanto, apesar desse acentuado peso dado às consequências que um certo comportamento acarreta, elas apenas justificam as alterações que se observa na frequência de aparecimentos do mesmo. Para explicar o surgimento de novos comportamentos ou daqueles valorizados em uma dada sociedade é preciso prestar atenção aos estímulos que provocam o aparecimento do comportamento desejado. De igual modo, a eliminação de modos de ser visto como impróprios também exigem atenção aos estímulos que desencadeiam a conduta tida como inadequada. Pode-se, assim, dizer que o comportamento é sempre o resultado de associações estabelecidas entre algo que provoca (um estímulo antecedente) e algo que o segue o mantém (um estímulo consequente).
Quando um comportamento for associado a um determinado estímulo, ele tende a reaparecer quando estiverem presentes estímulos semelhantes. Este fenômeno é chamado de generalização. Quando os estímulos são objetos, a cor, a forma e o tamanho são aspectos importantes para que haja percepção de semelhança e generalização de comportamentos. Após a aquisição da linguagem pela criança, as palavras tornam-se a base para generalizações. Mas não só isso. Além de a criança aprender a perceber semelhanças entre estímulos e a generalizar comportamentos, ela também aprende o inverso, ou seja, a discriminar estímulos a partir de suas diferenças. Uma criança que aprendeu a palavra “cachorro” associando-a a um animal de quatro patas pode usá-la, inicialmente, para nomear outros animais de quatro patas, como gatos e coelhos. Rapidamente, contudo, ela aprende a distinguir as características definidoras de um cachorro – como o latido – e passa a discriminar corretamente as várias espécies de animais.
A aprendizagem, na visão ambientalista, pode assim ser entendida como o processo pelo qual o comportamento é modificado como resultado da experiência. Além das condições já mencionadas para que a aprendizagem se dê – estabelecimento de associações entre um estímulo e uma resposta e entre uma resposta e um reforçador -, é importante que se leve em conta o estado fisiológico e psicológico do organismo. Crianças com fome tornam-se apáticas: não prestam atenção aos estímulos, não conseguem discriminá-los, não percebem as associações que estes provocam. Como consequência, não conseguem aprender. Crianças privadas de afeto tornam-se excessivamente dependentes da aprovação da professora: são incapazes de tomar iniciativa, por medo de que a sua maneira de comportar-se provoque sanções e reprimendas.
Para que a aprendizagem ocorra é preciso, portanto, que se considere a natureza dos estímulos presentes na situação, tipo de resposta que se espera obter e o estado físico e psicológico do organismo. É ainda importante aquilo que resultará da própria aprendizagem: mais conhecimento elogios, prestígio, notas altas etc.
Na visão ambientalista, a ênfase está em propiciar novas aprendizagens, por meio da manipulação dos estímulos que antecedem e sucedem o comportamento. Para tanto, é preciso uma análise rigorosa da forma como os indivíduos atuam em seu ambiente, identificando os estímulos que provocam o aparecimento do comportamento-alvo e as consequências que o mantém. A esta análise dá-se o nome de análise funcional do comportamento. Nela defende-se o planejamento das condições ambientais para a aprendizagem de determinados comportamentos.
A introdução de teorias ambientalistas na sala de aula teve o mérito de chamar a atenção dos educadores para a importância do planejamento de ensino. A organização das condições para que a aprendizagem ocorra exige clareza a respeito dos objetivos que se quer alcançar (objetivos instrucionais ou operacionais), a estipulação da sequência de atividades que levarão ao objetivo proposto e a especificação dos reforçadores que serão utilizados. A concepção ambientalista da educação valoriza o papel do professor, cuja importância havia sido minimizada na abordagem inatista. Coloca em suas mãos a responsabilidade de planejar, organizar e executar – com sucesso – as situações de aprendizagem. Para tanto, o professor pode fazer uso de vários artifícios para reforçar positivamente os comportamentos esperados: elogios, notas, diplomas etc, premiando também a entrega de lições caprichadas e corretas.
Por outro lado, as teorias ambientalistas tiveram também efeitos nocivos na prática pedagógica. A educação foi sendo entendida como tecnologia, ficando de lado a reflexão filosófica sobre a sua prática. A ênfase na tecnologia educacional exigia do professor um profundo conhecimento dos fatores a serem considerados numa programação de ensino, contudo tal conhecimento não era transmitido a eles. Programar o ensino deixou de ser uma atividade cognitiva de pesquisar condições de aprendizagem para se tornar uma atividade meramente formal de colocar projetos de ala numa fórmula-padrão.
A principal crítica que se faz ao ambientalismo é quanto à própria visão de homem adotada: a de seres humanos como criaturas passivas face ao ambiente, que podem ser manipuladas e controladas pela simples alteração das situações em que se encontram. Nesta concepção, não há lugar para criação de novos comportamentos. Na sala de aula, ela acarretou um excessivo diretivismo por parte do adulto. Deixou-se de valorizar e fazer uso de situações onde as crianças cooperam entre si para alcançar um fim comum. Tal concepção propõe que as situações de ensino devam ser bem estruturadas e planejadas previamente, recorrendo-se, sempre que possível, à presença de computadores, televisão e outros recursos audiovisiais.
Não há, na concepção ambientalista, preocupação em explicar os processos através dos quais a criança raciocina e que estariam presentes na forma como ela se apropria de conhecimentos. Outras concepções de desenvolvimento, analisadas a seguir, buscam essa explicação.

Concepção Interacionista

Dug (seis anos e meio), o que é um sonho? – Nós sonhamos à noite. A gente pensa em alguma coisa. – De onde vêm os sonhos? – Não sei. O que você acha? – Que nós mesmos é que fazemos os sonhos. – Onde está o sonho enquanto a gente sonha? – Lá fora. – Onde? – Aqui (mostra a lua, através da janela) – Por que lá fora? – Porque nós nos levantamos. – E daí? – Ele foi embora. – Enquanto a gente sonha, onde o sonho está? – Na nossa casa. – Onde? – Na nossa cama. – Onde? – Bem pertinho. – E se eu estiver lá no seu quarto, eu posso vê-lo? – Não...sim, porque você via estar perto da cama. (Piaget, A representação do mundo da criança.)


Para os psicólogos interacionistas, o fato de Dug ser capaz de responder a perguntas como essas mostra que as crianças procuram sempre, de forma ativa, compreender aquilo que vivenciam e explicar aquilo que lhes é estranho, construindo hipóteses que lhes pareçam razoáveis. Elas vão, portanto, construindo os seus conhecimentos por meio de sua interação com o meio. Nessa interação, fatores internos e externos se interrelacionam continuamente, formando uma complexa combinação de influências. Dessa maneira os interacionistas discordam das teorias inatistas, por desprezarem o papel do ambiente, e das concepções ambientalistas porque ignoram fatores maturacionais.
Os interacionistas destacam que o organismo e meio exercem ação recíproca. Um influencia o outro e essa interação acarreta mudanças sobre o indivíduo. É, pois, na interação da criança com o mundo físico e social que as características e peculiaridades desse mundo vão sendo conhecidas. Para cada criança, a construção desse conhecimento exige colaboração, ou seja, uma ação sobre o mundo.
A concepção interacionista de desenvolvimento apóia-se, portanto, na idéia de interação entre organismo e meio e vê a aquisição de conhecimento como um processo construído pelo indivíduo durante toda a sua vida, não estando pronto ao nascer nem sendo adquirido passivamente graças às pressões do meio. Experiências anteriores servem de base para novas construções que dependem, todavia, também da relação que o indivíduo estabelece com o ambiente numa situação determinada.
Especial importância é atribuída ao fator humano presente no ambiente. É através da interação com outras pessoas, adultos e crianças que, desde o nascimento, o bebê vai construindo suas características (seu modo de agir, de pensar, de sentir) e sua visão de mundo (seu conhecimento).



Extraído de: DAVIS, Claudia; OLIVEIRA, Zilma de. A Psicologia na Educação. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1994.



A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO SUJEITO

Na Índia, onde os casos de meninos-lobos foram relativamente numerosos, descobriram-se, em 1920, duas crianças, Amala e Kamala, vivendo no meio de uma família de lobos. A primeira tinha um ano e meio e veio a morrer um ano mais tarde. Kamala, de oito anos de idade, viveu até 1929. Não tinham nada de humano, e o seu comportamento era exatamente semelhante àquele dos seus irmãos lobos.
Elas caminhavam de quatro, apoiando-se sobre os joelhos e cotovelos para os pequenos trajetos e sobre as mãos e os pés para os trajetos longos e rápidos.
Eram incapazes de permanecer em pé. Só se alimentavam de carne crua ou podre, comiam e bebiam como os animais, lançando a cabeça para a frente e lambendo os líquidos. Na instituição onde foram recolhidas, passavam o dia acabrunhadas e prostradas numa sombra; eram ativas e ruidosas durante a noite, procurando fugir e uivando como lobos. Nunca choravam ou riam. Kamala viveu oito anos na instituição que a acolheu, humanizando-se lentamente. Ela necessitou de seis anos para aprender a andar e pouco antes de morrer só tina um vocabulário de 50 palavras. Atitudes afetivas foram aparecendo aos poucos.
Ela chorou pela primeira vez por ocasião da morte de Amala e se apegou lentamente às pessoas que cuidaram dela e às outras com as quais conviveu.
A sua inteligência permitiu-lhe comunicar-se com outros por gestos, inicialmente, e depois por palavras de um vocabulário rudimentar, aprendendo a executar ordens simples.

O relato acima descreve um fato verídico e permite entender em que medida as características humanas dependem do convívio social. Amala e Kamala, as meninas-lobas da Índia, por terem sido privadas do contato com outras pessoas, não conseguiram se humanizar: não aprenderam a se comunicar através da fala, não foram ensinadas a usar determinados utensílios e instrumentos sociais, não desenvolveram processos de pensamento lógico.
O caso de Amala e Kamala representa, no entanto, uma exceção. Em geral, o bebê nasce, cresce, vive e atua em um mundo social. É na interação com outras pessoas que as necessidades implicam sua própria sobrevivência física – alimentação, abrigo, proteção ao frio etc. – e sua sobrevivência psicológica – carícias, incentivos, amparo, proteção, segurança e conhecimento. É por intermédio do contato humano que a criança adquire a linguagem e passa, por meio dela, a se comunicar com outros seres humanos e a organizar seu pensamento.
Vivendo em sociedade, a criança aprende a planejar, direcionar e avaliar a sua ação. Ao longo desse processo, ela comete alguns erros, reflete sobre eles e enfrenta a possibilidade de corrigi-los. Experimenta alegrias, tristezas, períodos de ansiedade e de calma. Trata de buscar consolo em seus semelhantes. Não concebe a vida em isolamento.
É também no convívio social, através das atividades práticas realizadas, que se criam as condições para o aparecimento das consciência, que é a capacidade de distinguir entre as propriedades objetivos e estáveis da realidade e aquilo que é vivido subjetivamente. Através do trabalho, os homens se organizam para alcançar determinados fins, respondendo aos impasses que a natureza coloca à sobrevivência. Para tanto, usam do conhecimento acumulado por gerações e criam, a partir do trabalho, outros conhecimentos.
Ao transformar a natureza, os homens criam cultura, refinam, cada vez mais, técnicas, instrumentos – saber, enfim – e transformam a si mesmos: desenvolvem as suas funções mentais (percepção, atenção, memória, raciocínio) e a sua personalidade (sua maneira de sentir e atuar no mundo).
O papel da Psicologia é investigar as modificações que ocorrem nos processos envolvidos na relação do indivíduo com o mundo (cognitivos, emocionais, afetivos etc.), analisando os seus mecanismos básicos. Para realizar sua proposta, a Psicologia interage com outras ciências tais como a Medicina, a Biologia, a Filosofia, a Genética, a Antropologia, a Sociologia, além da Pedagogia. Estes ramos do conhecimento estão imbricados uns nos outros, de tal forma que, muitas vezes, é difícil saber em que domínio se está atuando.
Tanto o médico como o psicólogo têm, como se sabe, interesse em entender o efeito das drogas, doenças ou carências alimentares sobre o crescimento e desenvolvimento, bem como as alterações que provocam, do ponto de vista físico e psicológico, tanto na criança como no adulto. Neste sentido, a Psicologia pode buscar dados e informações na Medicina e vice-versa.
No caso das outras ciências, a situação é semelhante. Da Biologia, a Psicologia recolhe subsídios para compreender aspectos particulares das diversas formas de vida: vegetal, animal e humana. Em especial, o interesse está em conhecer as modalidades de adaptação que lhes permitem a sobrevivência. Desta forma, será possível, entre outras coisas, assegurar o conhecimento das diferenças entre a ação caracterizada por reflexos ou por instintos (que são específicos da espécie, biologicamente herdados e até certo ponto invariáveis, embora sejam poucos) daquelas que demonstram inteligência, ou seja, intencionalidade. Por outro lado, certos comportamentos como os que ocorrem na deficiência mental (e que são, ao menos parcialmente, hereditários) podem ser melhor compreendidos com o auxílio da Genética.
De igual maneira, o entendimento da relação entre o comportamento dos jovens e velhos e as alterações físicas e psicológicas que marcam a entrada na adolescência e na velhice, em grande parte, determinados pela atividade das glândulas endócrinas e pela bioquímica do sistema sangüíneo, ganha aprofundamento e abrangência ao se amparar na Fisiologia.
É preciso notar ainda que os sentimentos, a maneira de perceber o real e a significação que se dá a um ou outro evento parecem variar sensivelmente, dependendo do grupo étnico, religioso ou sócio-econômico do qual se faz parte. Daí que os dados da Antropologia e da Sociologia podem, conseqüentemente, ser de absoluta relevância para o estudo da personalidade e do desenvolvimento das características sociais.
Ao se dedicar ao estudo de tantos e diferentes aspectos, a Psicologia acaba por desenvolver campos de investigação mais específicos e delimitados. Importam, para a educação, os conhecimentos advindos da Psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem, áreas específicas da ciência psicológica.


Extraído de: DAVIS, Claudia; OLIVEIRA, Zilma de. A Psicologia na Educação. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1994.



TEORIA DE JEAN PIAGET

Jean Piaget (1896-1980) é o mais conhecido dos teóricos que defendem a visão interacionista de desenvolvimento. Formado em Biologia e Filosofia, dedicou-se a investigar cientificamente como se forma o conhecimento. Ele considerou que se estudasse cuidadosamente e profundamente a maneira pela qual as crianças constroem as noções fundamentais de conhecimento lógico – tais como as de tempo, espaço, objeto, causalidade etc – poderia compreender a gênese (ou seja, o nascimento) e a evolução do conhecimento humano.
Inicialmente, Piaget trabalhou com dois psicólogos franceses, Binet e Simon, que, por volta de 1905, tentavam elaborar um instrumento para medir a inteligência das crianças que frequentavam as escolas francesas. Tal instrumento – o teste de Inteligência Binet-Simon – foi o primeiro teste destinado a fornecer a idade mental de um indivíduo e é até hoje utilizado, depois de ter sofrido sucessivas adaptações. Ao analisar as respostas das crianças do teste, Piaget começou a se interessar pelas respostas erradas das crianças, salientando que estás só “erravam” porque as respostas eram analisadas a partir do ponto de vista do adulto. Na verdade as respostas infantis seguiam uma lógica própria.
Piaget concebeu, então, que a criança possui uma lógica de funcionamento mental que difere – qualitativamente – da lógica do funcionamento mental do adulto. Propôs-se consequentemente a investigar como, através de quais mecanismos, a lógica infantil se transforma em lógica adulta. Nessa investigação, Piaget partiu de uma concepção de desenvolvimento envolvendo um processo contínuo de trocas entre o organismo vivo e o meio ambiente.

Equilíbrio/Equilibração

A noção de equilíbrio é o alicerce da teoria de Piaget. Para este autor, todo organismo vivo – quer seja uma ameba, um animal, uma criança – procura manter um estado de equilíbrio ou de adaptação com seu meio, agindo de forma a superar perturbações na relação que ele estabelece com o meio. O processo dinâmico e constante do organismo buscar um novo e superior estado de equilíbrio é denominado processo de equilibração majorante.
Para Piaget, o desenvolvimento cognitivo do indivíduo ocorre através de constantes desequilíbrios e equilibrações. O aparecimento de uma nova possibilidade orgânica no indivíduo ou a mudança de alguma característica do meio ambiente, por mínima que seja, provoca a ruptura do estado de repouso – da harmonia, entre organismo e meio – causando um desequilíbrio.
Dois mecanismos são acionados para alcançar um novo estado de equilíbrio. O primeiro recebe o nome de assimilação. Através dele o organismo – sem alterar suas estruturas – desenvolve ações destinadas a atribuir significações, a partir da suas experiência anterior, aos elementos do ambiente com os quais interage. O outro mecanismo, através do qual o organismo tenta restabelecer um equilíbrio superior com o meio ambiente, é chamado acomodação. Agora, entretanto, o organismo é impelido a se modificar, a se transformar para se ajustar às demandas impostas pelo ambiente.
Embora assimilação e acomodação sejam processos distintos e opostos, numa realidade eles ocorrem ao mesmo tempo. Por exemplo, ao pegar uma bola, ocorre assimilação na medida em que a criança pequena faz uso do esquema de pegar (uma certa postura de braço, mão e dedos) que já lhe é conhecido, atribuindo à bola o significado do “objeto que se pega”. No entanto, a acomodação também está presente, uma vez que o esquema em questão precisa ser modificado para se ajustar às características do objeto. Assim, a abertura dos dedos e a força empregada para retê-lo são diferentes quando se pega uma bola de gude ou uma bola de futebol.
Ao longo do processo de desenvolvimento existem, no entanto, ocasiões em que um desses mecanismos prepondera sobre o outro. Assim, há momentos em que a assimilação prevalece sobre a acomodação, como ocorre no jogo simbólico infantil, onde o mesmo esquema é aplicado a diferentes objetos (ou diferentes esquemas a um mesmo objeto), modificando-lhes os significados. É possível, por exemplo, ver a criança pequena usar em suas brincadeiras uma folha de jornal de diferentes maneiras: para cobrir uma boneca, para fazê-la voar como se fosse avião, para servir de bola. Mas a criança pode também aplicar o esquema de “jogar para cima” a uma bola de papel, a uma folha de jornal, a uma boneca etc.
Por outro lado, há momentos em que a acomodação é mais importante que a assimilação, como se passa na imitação, onde a criança procura copiar as ações de um modelo, ajustando seus esquemas aos da pessoa imitada.

As etapas do desenvolvimento cognitivo

Piaget definiu o desenvolvimento como sendo um processo de equilibrações sucessivas. Entretanto, esse processo, embora contínuo, é caracterizado por diversas fases, ou etapas, ou períodos. Cada etapa define um momento de desenvolvimento ao longo do qual a criança constrói certas estruturas cognitivas. Segundo Piaget, o desenvolvimento passa por quatro etapas distintas: a sensoriomotora, a pré-operatória, a operatório-concreta e a operatório-formal. Vejamos como se caracterizam.

I) A etapa sensoriomotora

Vai do nascimento até, aproximadamente, os dois anos de idade. Nela, a criança baseia-se exclusivamente em percepções sensoriais e em esquemas motores para resolver seus problemas, que são essencialmente práticos: bater numa caixa, pegar um objeto, jogar uma bola etc. Nesse período, muito embora a criança tenha já uma conduta inteligente, considera-se que ela ainda não possui pensamento. Isto porque, nessa idade, a criança não dispõe ainda da capacidade de representar eventos, de evocar o passado e de referir-se ao futuro. Está presa ao aqui e agora da situação. Para conhecer, portanto, lança mão de esquemas sensoriomotores: pega, balança, joga, bate, morde objetos e atua sobre os mesmos de uma forma “pré-lógica” colocando um sobre o outro, um dentro do outro. Forma, assim, “conceitos sensoriomotores” de maior, de menor, de objetos que balançam e objetos que não balançam etc. Ocorre, como consequência, uma “definição” do objeto por intermédio do seu uso. A criança pequena também aplica esquemas sensoriomotores para se relacionar e conhecer outros seres humanos.
Os esquemas sensoriomotores são construídos a partir de reflexos inatos (o de sucção, por exemplo), usados pelo bebê para lidar com o ambiente. Tais esquemas, formas de inteligência exteriorizada, vão-se modificando com a experiência. Gradativamente, a criança vai diferenciando-os e tomando-os cada vez mais complexos e maleáveis, o que lhe permite estabelecer ligações entre fatos como, por exemplo, bolsa e mamãe, som de sirene e polícia. Ou seja, os esquemas iniciais dão origem a esquemas conceituais, modos internalizados de agir para conhecer, que pressupõem pensamento.
A partir da construção de esquemas pela transformação da sua atividade sobre o meio, a criança via construindo e organizando noções. Nesse processo, afetividade e inteligência são aspectos indissociáveis e influenciados, desde cedo, pela socialização.
Dentre as principais aquisições do período sensoriomotor, destaca-se a construção da noção de “eu”, através da qual a criança diferencia o mundo externo do seu próprio corpo. O bebê o explora, percebe suas diversas partes, experimenta emoções diferentes, formando a base do seu autoconceito. Mas não é só isso. Ao longo desta etapa, a criança irá elaborar sua organização psicológica básica, seja no aspecto motor, no perceptivo, no afetivo, no social e no intelectual.
Além de perceber a diferença entre si mesma e os objetos ao seu redor, a criança será capaz de estabelecer também diferenças entre tais objetos, chegando, finalmente, à concepção de uma realidade estável, onde a existência dos objetos é independente da percepção imediata. Esta é uma grande conquista. Após ter sido capaz de identificar um objeto, separando-o dos demais, o bebê, todavia, age em relação a esse objeto apenas se ele estiver visível à sua frente. Se um bebê de cinco meses de idade estiver brincando com um objeto e se este for coberto por um pano, imediatamente ele volta sua atenção para outra coisa, agindo como se o primeiro objeto, por ter sido coberto, tivesse deixado de existir. Só mais tarde, aos oito meses, o bebê se apercebe que o objeto está ali, debaixo do pano. Experimenta grande satisfação com este fato, escondendo o objeto com o pano e descobrindo-o, várias vezes.
Nesse mesmo período, as concepções de espaço, tempo e causalidade começam a ser construídas, possibilitando à criança novas formas de ação prática para lidar com o meio. Aos poucos, o período sensoriomotor vai-se modificando. Esquemas cada vez mais complexos são construídos, de forma a preparar e a dar origem ao aparecimento da função simbólica, o seja, a capacidade de representar eventos futuros, de libertar-se, portanto, do universo restrito do aqui e agora. O aparecimento da função simbólica altera drasticamente a forma como a criança lida com o meio e anuncia uma nova etapa, denominada pré-operatória.

II) A etapa pré-operatória


A etapa pré-operatória é marcada, em especial, pelo aparecimento da linguagem oral, por volta dos dois anos. Ela permitirá à criança dispor – além da inteligência prática construída na fase anterior – da possibilidade de ter esquemas de ação interiorizados, chamados de esquemas representativos ou simbólicos, ou seja, esquemas que envolvem uma idéia preexistente a respeito de algo. É capaz de formar, por exemplo, representações de avião, de papai, de sapato, de que não se deve bater em outra criança etc.
A partir dessa novas possibilidades de lidar com o meio, dos dois anos em diante a criança poderá tomar um objeto ou uma situação por outra, por exemplo, pode tomar um boneco por um bebê ou pode tomar uma bolsa, colocando-a no braço e agindo como se fosse sua mãe preparando-se para sair de casa. Pode ainda substituir objetos, ações, situações e pessoas por símbolos, que são as palavras. Compreende que “papai” refere-se a uma pessoa específica, que dizer “água” (e mais tarde “qué água” ou nenê qué água” ou “quero água”) indica a expressão de um desejo. Tem origem, então, o pensamento sustentado por conceitos.
O pensamento pré-operatório indica, portanto, inteligência capaz de ações interiorizadas, ações mentais. Ele é, entretanto, diferente do pensamento adulto, como é fácil de se constatar. Em primeiro lugar, depende das experiências infantis, refere-se a elas, sendo portanto um pensamento que a criança centra em si mesma. Por esta razão, o pensamento pré-operatório recebe o nome de pensamento egocêntrico (ou seja, centrado no ego, no sujeito). É um pensamento rígido (não-flexível) que tem como ponto de referência a própria criança. Considere o seguinte diálogo:

Adulto: - Quantos irmão você tem?
Criança: - Eu tenho só um irmão.
Adulto: - E seu irmão, quantos irmãos tem?
Criança: - Meu irmão!? Ora, nenhum...

Fica claro que, muito embora a criança saiba que possuiu um irmão, a lógica do seu pensamento não lhe permite compreender que o seu irmão também tem um irmão. Ela só consegue conceber a sua família tornando a si mesma como referência, não se colocando do ponto de vista do outro.
Outra característica do pensamento desta etapa é o animismo. Este termo indica que a criança empresta “alma” (anima, em latim) às coisas e animais, atribuindo-lhes sentimentos e intenções próprios do ser humano. Assim, é freqüente ouvi-la dizer que a mesa é má quando nela machuca a cabeça, de que o vento “quer” embaraçar o seu cabelo penteado.
O pensamento da criança de dois a sete anos apresenta, ainda, uma outra característica, bastante similar ao animismo. É o antropomorfismo ou a atribuição de uma forma humana a objetos e animais. As nuvens por exemplo, pode ser concebidas como grandes rostos que sopram um hálito forte.
Uma outra característica interessante e própria do pensamento pré-operatório é a transdedutividade. Ao invés de partir de um princípio geral para entender um fato particular – como se faz na dedução – ou de um aspecto particular para compreender o seu princípio geral de funcionamento – como no caso da indução -, a criança parte do particular para o particular. Isto aponta enorme dificuldade que as crianças de dois a sete anos têm, tanto para elaborar leis, princípios e normas gerais a partir de sua experiência cotidiana, como para julgar, apreciar ou entender a sua vida cotidiana a partir de princípios gerais.
Piaget exemplifica com um fato ocorrido com ele mesmo: estava colocando uma panela de água para esquentar, a fim de ter água quente para se barbear, quando um dos seus filhos lhe perguntou por que fazia isso. Piaget, naturalmente respondeu: “Para fazer a barba!”. Dias mais tarde ao ver uma panela de água sendo levada ao fogo, a mesma criança exclamou: “Papai vai se barbear!”. Ora, essa criança, no período pré-operatório, não aprendeu que a água quente – enquanto princípio geral – pode ser usada em diferentes situações particulares: na cozinha, para amolecer os grãos duros do feijão; ao fazer a barba, para não machucar a pelo do rosto; na limpeza, para derreter a crosta das gorduras etc.
O pensamento pré-operatório é também extremamente dependente da percepção imediata, sofrendo com isto uma série de distorções. Assim, por exemplo, uma criança de cerca de cinco anos terá dificuldade em considerar iguais duas filas compostas do mesmo número de elementos, se uma delas “parecer” mais comprida que a outra, como no desenho abaixo.

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Naturalmente, a fila que parece maior será considerada como contendo mais elementos, mesmo que a criança tenha-se certificado, anteriormente, de que as quantidades eram, em uma e outra fila, absolutamente iguais. É por isso que Piaget afirma que a criança, no período pré-operatório, não tem noção de conservação. Para ela, mudando-se a aparência do objeto, muda também a quantidade, o volume, a massa e o peso do mesmo.
As ações no período pré-operatório, embora internalizadas, não são ainda reversíveis. Por exemplo, ao se pedir para uma criança de quatro anos para acrescentar três laranjas a uma determinada quantidade de laranjas e depois para retirar três laranjas, ela não entenderá que ficou com o número inicial de laranjas, a não ser que faça contagem das laranjas disponíveis em todos os momentos de operação. Falta-lhe, portanto, uma da condições de pensamento necessárias para que haja uma operação: a reversibilidade. É por isso que este período recebe o nome de pré-operatório. Nele, a criança ainda ao é capaz de perceber que é possível retornar, mentalmente, ao ponto de partida.

III) A etapa operatório-concreta

Por volta dos sete anos de idade, as características da inteligência infantil, a forma como a criança lida com o mundo e o conhece, demonstram que ela se encontra numa nova etapa de desenvolvimento cognitivo: a etapa operatório-concreta. Ao se comparar as aquisições deste período com aquele que o precedeu, observa-se que grande modificações ocorreram.
Em primeiro lugar, é nesta etapa que o pensamento lógico, objetivo, adquire preponderância. Ao longo dela, as ações interiorizadas vão se tornando cada vez mais reversíveis e, portanto, móveis e flexíveis. O pensamento se torna menos egocêntrico, menos centrado no sujeito. Agora a criança é capaz de construir um conhecimento mais compatível com o mundo que a rodeia. O real e o fantástico não mais se misturarão em sua percepção.
Além disso, o pensamento é denominado operatório porque é reversível: o sujeito pode retornar, mentalmente, ao ponto de partida. A criança opera quando tem noção, por exemplo de que 2+3 = 5, pois sabe que 5-3= 2. De igual modo, a compreensão de que uma dada quantidade de argila não se altera, se eu emprego a mesma porção para fazer uma salsicha e a seguir para transformar a salsicha em bola, também constitui uma operação.
A construção das operações possibilita, assim, a elaboração da noção de conservação. O pensamento agora baseia-se mais no raciocínio que na percepção. Como consequência, alterar a disposição de duas fileiras, contendo ambas o mesmo número de elementos, não fará o menino ou menina achar que as fileiras possuem número diferente de elementos. Da mesma forma que é capaz de perceber que a quantidade se conserva, independentemente da disposição dos elementos no espaço, a criança operatória tem noção de conservação quanto à massa, peso e volume dos objetos.
Neste período de desenvolvimento o pensamento operatório é denominado concreto porque a criança só conseguem pensar corretamente nesta etapa se os exemplos ou materiais que ela utiliza para apoiar seus pensamento existem mesmo e podem ser observados. A criança não consegue ainda pensar abstratamente, apenas com base em proposições e enunciados. Pode então ordenar, seriar, classificar etc.

IV) A etapa operatório-formal

A principal característica da etapa operatório-formal, por sua vez, reside no fato de que o pensamento se torna livre das limitações da realidade concreta. O que significa isso? Como já foi assinalado, a criança que se encontra no período operatório-concreto só consegue pensar corretamente, com lógica, se o conteúdo do seu pensamento estiver representando fielmente a realidade concreta. Por exemplo, a partir de diversas situações envolvendo observação de cavalos, fotos de cavalos e histórias sobre cavalos, a criança constrói a noção de cavalo sendo um animal de porte grande, de quatro patas, que gosta de comer capim e que é utilizado no transporte de coisas ou pessoas.
No nível operatório-formal, a partir dos 13 anos de idade, a criança se torna capaz de raciocinar logicamente mesmo se o conteúdo de seu raciocino é falso. Por exemplo, é possível combinar com duas crianças de idades diferentes, uma no período operatório-concreto e outra no operatório-formal, que a figura de uma coruja desenhada em um papel receberá o nome de “cavalo”. A seguir, pede-se a elas que identifiquem oralmente qual é o nome de um animal de porte grande, que come capim e transporta pessoas ou coisas. A criança do período operatório-concreto irá ignorar o que foi anteriormente combinado e dirá que o nome do animal proposto é cavalo. Já a mais velha, que já apresenta um pensamento operatório-formal, irá afirmar que o animal em questão poderia receber qualquer nome, à exceção do cavalo, uma vez que, por definição (e não concretamente), “cavalo” é o nome que, na situação, se convencionou dar à coruja.
Dessa maneira, a criança operatório-formal pode pensar de modo lógico e correto mesmo com um conteúdo de pensamento incompatível com o real. Já a criança operatório-concreta não: ela se desequilibra e falseia no raciocínio, porque é prisioneira da realidade concreta.
A libertação do pensamento das amarras do mundo concreto, adquirido no operatório-formal, permitirá ao adolescente pensar e trabalhar não só com a realidade concreta, mas também com a realidade possível. Como consequência, a partir de treze anos, o raciocínio pode, pela primeira vez, utilizar hipóteses, visto que estas não são, em princípio, nem falsas nem verdadeiras: são apenas possibilidades. Uma vez de posse dessa faculdade de produzir e operar com base em hipóteses é possível derivar delas todas as consequências lógicas cabíveis. A construção típica da etapa operatório-formal é, assim, o raciocínio hipotético-dedutivo: é ele que permitirá ao adolescente estender seu pensamento até o infinito.
É por isso que o adolescente, contando agora com essa ampla capacidade de pensar o mundo, abandona-se, com frequência, ao exercício de montar grandes sistemas de explicação e transformação do universo, da matéria, do espírito ou da sociedade. Ao atingir o operatório-formal, o adolescente atinge o grau mais complexo do seu desenvolvimento cognitivo. A tarefa, a partir de agora, será apenas a de ajustas, solidificar e estofar as suas estruturas cognitivas.
Piaget acredita que existem, no desenvolvimento humano, diferentes momentos: um pensamento, uma maneira de calcular, uma certa conclusão, podem aparecer absolutamente corretos em um determinado período de desenvolvimento e absurdos num outro. As etapas de desenvolvimento do pensamento são, ao mesmo tempo, contínuas e descontínuas. Elas são contínuas porque sempre se apóiam na anterior, incorporando-a e transformando-a. Fala-se em descontinuidade no desenvolvimento, por outro lado, porque cada nova etapa não é mero prolongamento da que lhe antecedeu: transformações qualitativas radicais ocorrem no modo de pensar das crianças. As etapas de desenvolvimento encontram-se, assim, funcionalmente relacionadas dentro de um mesmo processo.
Deve-se, ainda, observar que as faixas etárias previstas para cada etapa não são rigidamente demarcadas. Ao contrário, elas se referem apenas às médias de idade onde prevalecem determinadas construções de pensamento. Nesse sentido, o modelo piagetiano é fortemente marcado pela maturação, pois atribui-se a ela o fato de crianças apresentarem sempre determinadas características psicológicas em uma mesma faixa de idade. Tal modelo pretende, por isso, ser universal.
Não obstante, Piaget reconhece que, a despeito de preponderar em determinadas faixas etárias uma forma específica de pensar e atuar sobre o mundo, podem existir atrasos ou avanços individuais em relação à norma do grupo. Essa variação pode ser devida, em grande parte, à natureza do ambiente em que as crianças vivem. Contextos que colocam desafios às crianças são potencialmente mais estimulantes para o desenvolvimento cognitivo.
As diferentes etapas cognitivas apresentam, portanto, características próprias e cada uma delas constitui um determinado tipo de equilíbrio. Ao longo do desenvolvimento mental, passa-se de um para outra etapa, buscando um novo e mais completo equilíbrio que depende, entretanto, das construções passadas.
Não é possível passar, por exemplo, da etapa sensoriomotora para a operatório-concreta, “pulando” a pré-operatória. A sequência das etapas é sempre invariável, muito embora, como já foi visto, a época em que as mesmas são alcançadas possa não ser sempre a mesma para todas as crianças. De igual modo, as etapas do desenvolvimento cognitivo não são reversíveis: ao se construir uma determinada capacidade mental, não mais é possível perdê-la.
Dos quatro fatores básicos responsáveis pela passagem de uma etapa de desenvolvimento mental para a seguinte – a maturidade do sistema nervoso, a interação social (que se dá através da linguagem e da educação), a experiência física com os objetos e, principalmente, a equilibração, ou seja, a necessidde que a estrutura cognitiva tem de se desenvolver para enfrentar as demandas ambientais – o de menor peso, na teoria piagetiana, é a interação social. Desta maneira, a educação – e em especial a aprendizagem não se confundem: o primeiro é um processo espontâneo, que se apóia predominantemente no biológico. Aprendizagem, por outro lado, é encarada como um processo mais restrito, causado por situações específicas (como a frequência à escola) e subordinado tanto à equilibração quanto à maturação.



Referência bibliográfica:

DAVIS, Claudia; OLIVEIRA, Zilma de. Psicologia na Educação. São Paulo: Cortez, 1994.



A TEORIA DE VYGOTSKY


Um outro tipo de interacionismo é proposto por Lev Seminovitch Vygotski (1896-1934). Nascido na Rússia, ele escreveu, em sua curta vida, uma ampla e importante obra, da qual apenas alguns livros foram traduzidos para o português.
No trabalho de Vygotski e no dos seus seguidores, especialmente no dos seus conpatriotas Luria e Leontiev, encontra-se uma visão de desenvolvimento baseada na concepção de um organismo ativo, cujo pensamento é construído paulatinamente num ambiente que é histórico e, em essência, social. Nessa teoria é dado destaque às possibilidades que o indivíduo dispõe a partir do ambiente em que vive e que dizem respeito ao acesso que o ser humano tem a “instrumentos” físicos (como a enxada, a faca, a mesa etc.) e simbólicos (como a cultura, valores, crenças, costumes, tradições, conhecimentos) desenvolvidos em gerações precedentes.
Vygotski defende a idéia da contínua interação entre as mutáveis condições sociais e a base biológica do comportamento humano. Partindo de estruturas orgânicas elementares, determinadas basicamente pela maturação, formam-se novas e mais complexas funções mentais, a depender da natureza das experiências sociais a que as crianças se acham expostas.
A forma como a fala é utilizada na interação social com adultos e colegas mais velhos desempenha um papel importante na formação e organização do pensamento complexo e abstrato individual. O pensamento infantil, amplamente guiado pela fala e pelo comportamento dos mais experientes, gradativamente adquire a capacidade de se auto-regular. Por exemplo, quando a mãe mostra a uma criança de dois anos um objeto e diz “a faca corta e dói”, o fato de ela apontar para o objeto e de assim descrevê-lo provavelmente provocará uma modificação na percepção e no conhecimento da criança. O gesto e a fala maternos servem como sinais externos que interferem no modo pelo qual o menino ou menina age sobre seu ambiente: com o tempo, ocorre uma interiorização progressiva das direções verbais fornecidas à criança pelos membros mais experientes de um ambiente social.
Esta interiorização progressiva das orientações advindas do meio social não se faz, entretanto, de forma linear. Caso isto ocorresse se poderia pressupor, como Vygotski de fato o faz, que a criança seja um ser ativo. Adicionalmente. Sua teoria seria, antes de mais nada, marcada por um forte determinismo do social no individual, uma vez que este último simplesmente espelharia o primeiro.
O processo de internalização é, ao contrário, um processo ativo, no qual a criança apropria-se do social de uma forma particular. Reside aí, na verdade, o papel estruturante do sujeito: interiorização e transformação interagem constantemente, de forma que o sujeito, ao mesmo tempo que se integra no social, é capaz de posicionar-se frente ao mesmo, ser seu crítico e seu agente transformador. Assim, à medida que as crianças crescem, elas vão internalizando a ajuda externa que se torna cada vez menos necessária: a criança mantém, agora, o controle sobre sua própria conduta.
Através da própria fala, o ambiente físico e social pode ser melhor apreendido, aquilatado e equacionado: a fala modifica, assim, a qualidade de conhecimento e pensamento que se tem do mundo em que se encontra.
Ao internalizar instruções, as crianças modificam suas funções psicológicas: percepção, atenção, memória, capacidade para solucionar problemas. É dessa maneira que formas historicamente determinadas e socialmente organizadas de operar com informação influenciam o conhecimento individual, a consciência de si e do mundo. Por exemplo, a visão de mundo e as conseqüentes formas de interagir com as crianças adotadas pelos adultos no século XV diferem substancialmente das utilizadas hoje em dia, especialmente se as compararmos com a do mundo urbano moderno, fortemente influenciado pelos meios de comunicação de massa. Traduzem formas diferentes de organizar, planejar e atuar sobre a realidade.
Assim, as funções mentais superiores – como a capacidade de solucionar problemas, o armazenamento e o uso adequado da memória, a formação de novos conceitos, o desenvolvimento da vontade – aparecem, inicialmente, no plano social (ou seja, na interação envolvendo pessoas) e apenas elas surgem no plano psicológico (ou seja, no próprio indivíduo). A construção do real pela criança, ou seja, a apropriação que esta faz da experiência social, parte, pois, do social (da interação com os outros) e, paulatinamente, é internalizada por ela.
Segundo Vygotski, a aquisição de um sistema lingüístico reorganiza, pois, todos os processos mentais infantis. A palavra dá forma ao pensamento, criando novas modalidades de atenção, memória e imaginação. Mas não só isto. Além de indicar um objeto do mundo externo, ela também especifica as principais características desse objeto (abstraindo-as da características dos demais objetos), generaliza as características da linguagem para o pensamento: ela sistematiza a experiência direta da criança e serve para orientar o seu comportamento.
A relação entre fala extrema e pensamento modifica-se ao longo do desenvolvimento. Até por volta dos três anos de idade, a fala acompanha, frequentemente, o comportamento infantil. É comum a criança de dois anos agir e descrever o que faz, ao mesmo tempo. A partir de então observa-se que a fala começa a preceder o comportamento: o menino ou a menina anuncai o que irá fazer a seguir. A fala adquire, pois, uma nova função, que é característica do pensamento complexo: a de planejar a ação, de guiar as atividades da criança. Isto é verificado quando se observa a modificação do “falar para si em voz alta”, típico dos menores. Após a idade de seis anos, Vygotski notou que o falar em voz alta, para si mesmo, torna-se fragmentado: é substituído por sussurros e começa a “desaparecer”, tornando-se uma fala interna, aspecto integral do pensamento e que o direciona. Contudo, sempre que há confronto com situações-problemas de difícil solução, a fala externa volta a aparecer, auxiliando a atividade cognitiva.
Dessa maneira, é possível afirmar que Vygotski adota a visão de que pensamento e linguagem são dois círculos interligados. É na interseção deles que se produz o que se chama pensamento verbal, o qual não inclui, assim, nem todas as formas de pensamento, nem todas as formas de linguagem. Existem, portanto, áreas do pensamento que não têm relação direta com a fala, como é o caso da inteligência prática, em geral. Por outro lado, Vygotski dá uma importância tão grande ao pensamento verbal que chega a afirmar que as estruturas de linguagem dominadas pelas crianças passam a constituir as estruturas básicas de sua forma de pensar.
Ao reconhecer a imensa diversidade nas condições histórico-sociais em que as crianças vivem, Vygotski não aceita a possibilidade de existir uma sequência universal de estágios cognitivos, como propõe Piaget. Para Vygotski, os fatores biológicos preponderam sobre os sociais apenas no início da vida das crianças e as oportunidades que se abrem para cada uma delas são muitas e variadas, adquirindo destaque, em sua teoria as formas pelas quais as condições e as interações humanas afetam o pensamento e o raciocínio.

A construção do pensamento complexo e do abastrato.

Para Vygotski, o processo de formação do pensamento é, portanto, despertado e acentuado pela vida social e pela constante comunicação que se estabelece entre crianças e adultos, a qual permite a assimilação da experiência de muitas gerações.
Como já foi dito, a linguagem intervém no processo de desenvolvimento intelectual da criança praticamente já desde o nascimento. Quando os adultos nomeiam objetos, indicando para a criança as várias relações que estes mantêm entre si, ela constrói formas mais complexas e sofisticadas de conceber a realidade. Sozinha, não seria capaz de adquirir aquilo que obtém por intermédio de sua interação com os adultos e com as outras crianças, num processo em que a linguagem é fundamental.
Em sala de aula, por exemplo, ao ensinar, o professor destaca alguns objetos existentes no ambiente chama a atenção dos alunos para determinados aspectos enquanto negligencia outros e levanta questões acerca dos elementos destacados. Nessa interação com o professor os alunos têm oportunidade para reestrutura sua percepção, discriminar pontos centrais daqueles que são acessórios ou pouco relevantes. Tais formas comportamentais usadas pelo professor na situação de aprendizagem vão sendo apropriadas pelos alunos que podem passar a usá-las de modo independente, ao tentar compreender novos aspectos de ambiente.

Desenvolvimento e aprendizagem

Vygotski considera três teorias principais que discutem a relação entre desenvolvimento e aprendizagem. Na primeira, desenvolvimento é encarado como um processo maturacional que ocorre antes da aprendizagem, criando condições para que esta se dê. É preciso haver um determinado nível de desenvolvimento para que certos tipos de aprendizagem seja possíveis. Esta é, em essência, a posição defendida por Piaget. Na segunda teoria, a comportamentalista ou behaviorista, a aprendizagem é desenvolvimento, entendido como acúmulo de respostas aprendidas. Nessa concepção, o desenvolvimento ocorre simultaneamente à aprendizagem, ao invés de precedê-la. O terceiro modelo teórico sugere que desenvolvimento e aprendizagem são processos independentes que interagem, afetando-se mutuamente: aprendizagem causa desenvolvimento e vice-versa.
Para Vygotski, no entanto, nenhuma das propostas acima é satisfatória, muito embora ele reconheça que aprendizagem e desenvolvimento seja fenômenos distintos e interdependentes, cada um tornando o outro possível. Questionando a interação entre estes dois processos, Vygotski aponta o papel da capacidade do homem de entender e utilizar a linguagem. Assim, vê a inteligência como habilidade para aprender, desprezando teorias que concebem a inteligência resultante de aprendizagens prévias, já realizadas. Para ele, as medidas tradicionais de desenvolvimento, que se utilizam de testes psicológicos padronizados, focalizam apenas aquilo que as crianças são capazes de realizar sozinhas.
Segundo o especialista russo, a referência do indivíduo com parceiros mais experientes cria uma “zona de desenvolvimento potencial” . Ele usou este termo para se referir à distância entre o nível de desenvolvimento atual – determinado pela capacidade de solução, sem ajuda, de problemas – e o nível potencial de desenvolvimento – medido através da solução de problemas sob a orientação ou em colaboração com as crianças mais experientes. Duas crianças que obtiveram o mesmo resultado num teste de inteligência (e que parecem, portanto, muito semelhantes em termos de maturação e de aprendizagens prévias) podem ser completamente diferentes, quando se considera os aspectos de desenvolvimento que ainda precisam ser construídos para que se apropriem de aprendizagens previstas para o próximo nível de idade.
Desse ponto de vista é possível afirmar que a diferença entre as crianças deve-se, em grande parte, a diferença qualitativas em seu ambiente social, ou seja, a diferente forma de relacionarem-se com as pessoas em seus ambientes. Essas formas auxiliam as crianças a entrarem em sintonia com os procedimentos e os modos de realização das tarefas que se fazem necessários à vida social, favorecendo, consequentemente, a construção e o domínio de dadas funções psicológicas. Trata-se, pois, de diferenças qualitativas nos padrões de interação cognitiva presentes em ambientes sociais distintos. Tais padrões permitem, dificultam ou criam sérios entraves à construção do conhecimento por parte das crianças.
As diferenças encontradas nos diferentes ambientes sociais das crianças (incluindo o doméstico, o escolar, o de trabalho etc. de cada uma delas) promovem aprendizagens diversas que passam a ativar processos de desenvolvimento também diversos. Portanto, a aprendizagem precederia o desenvolvimento intelectual, ao invés de segui-lo ou de ser com ele coincidente.
O conceito de “zona de desenvolvimento potencial” possibilita compreender funções de desenvolvimento que estão a caminho de se completar. Neste sentido, pode ser utilizado tanto para mostrar a forma como a criança organiza a informação, como para verificar o modo como o seu pensamento opera. Tal conceito é de extrema importância para um ensino efetivo. Apenas conhecendo o que as crianças são capazes de realizar com e sem ajuda externa é que se pode conseguir planejar as situações de ensino e avaliar os progressos individuais. Portanto, o papel da educação e, consequentemente, o da aprendizagem, ganham destaque na teoria de desenvolvimento de Vygotski, que também mostra que a qualidade das trocas que se dão no plano verbal entre professor e alunos irá influenciar decisivamente na forma como as crianças tornam mais complexo o seu pensamento e processam novas informações.
Para Vygotski, em resumo, o processo de desenvolvimento nada mais é do que a apropriação ativa do conhecimento disponível na sociedade em que a criança nasceu. É preciso que ela aprenda e integre em sua maneira de pensar o conhecimento da sua cultura. O funcionamento intelectual mais complexo desenvolve-se graça a regulações realizadas por outras pessoas que, gradualmente, são substituídas por auto-regulações. Em especial, a fala é apresentada, repetida e refinada, acabando por ser internalizada, permitindo à criança processar informações de uma forma mais elaborada.

Referência bibliográfica:

DAVIS, Claudia; OLIVEIRA, Zilma de. Psicologia na Educação. São Paulo: Cortez, 1994.




PIAGET E VYGOTSKY: DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS

Do que foi visto, é possível afirmar que tanto Piaget como Vygotski concebem a criança como um ser ativo, atento, que constantemente cria hipóteses sobre o seu ambiente. Há, no entanto, grandes diferenças na maneira de conceber o processo de desenvolvimento. As principais delas são as seguitnes:

a) Quanto ao papel dos fatores internos e externos no desenvolvimento

Piaget privilegia a maturação biológica, Vygotski o ambiente social. Piaget, por aceitar que os fatores internos preponderam sobre os externos, postula que o desenvolvimento segue uma seqüência fixa e universal de estágios. Vygotski, ao salientar o ambiente social em que a criança nasceu, reconhece que, em se variando esse ambiente, o desenvolvimento também variará. Neste sentido, não se pode aceitar uma visão única, universal, de desenvolvimento humano.

b) Quanto à construção real

Piaget acredita que os conhecimentos são elaborados espontaneamente pela criança, de acordo com o estágio de desenvolvimento em que se encontra. A visão particular e peculiar (egocêntrica) que as crianças mantêm sobre o mundo vai, progressivamente, aproximando-se da concepção dos adultos: torna-se socializada, objetiva. Vygotski discorda de que a construção do conhecimento proceda do individual para o social. Em seu entender a criança já nasce num mundo social e, desde o nascimento, vai formando uma visão desse mundo através da interação com adultos ou crianças mais experientes. A construção do real é, então, mediada pelo interpessoal antes de ser internalizada pela criança. Desta forma, procede-se do social para o individual, ao longo do desenvolvimento.

c) Quanto ao papel da aprendizagem

Piaget acredita que a aprendizagem subordina-se ao desenvolvimento e tem pouco impacto sobre ele. Com isso, ele minimiza o papel da interação social. Vygotski, ao contrário, postula que desenvolvimento e aprendizagem são processos que se influenciam reciprocamente, de modo que, quanto mais aprendizagem, mais desenvolvimento.

d) Quanto ao papel da linguagem no desenvolvimento e à relação entre linguagem e pensamento.

Segundo Piaget, o pensamento aparece antes da linguagem, que apenas é uma das suas formas de expressão. A formação do pensamento depende, basicamente, da coordenação dos esquemas sensoriomotores e não da linguagem. Esta só pode ocorrer depois que a criança já alcançou um determinado nível de habilidades mentais, subordinando-se, pois, aos processos de pensamento. A linguagem possibilita à criança evocar um objeto ou acontecimento ausente na comunicação de conceitos. Piaget, todavia, estabeleceu uma clara separação entre as informações que podem se passadas por meio da linguagem. Por exemplo, não se pode ensinar, apenas usando palavras, a classificar, a seriar, a pensar com reversibilidade.
Já para Vygotsky, pensamento e linguagem são processos interdependentes, desde o início da vida. A aquisição da linguagem pela criança modifica suas funções mentais superiores: ela dá uma forma definida ao pensamento, possibilita o aparecimento da imaginação, o uso da memória e o planejamento da ação. Neste sentido, a linguagem, diferentemente daquilo que Piaget postula, sistematiza a experiência direta das crianças e por isso adquire uma função central no desenvolvimento cognitivo, reorganizando os processos que nele estão em andamento.

Extraído de: DAVIS, Claudia; OLIVEIRA, Zilma de. Psicologia na Educação. São Paulo: Cortez, 1994.


A TEORIA DE HENRI WALLON


HENRI WALLON:
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
Ione Collado Pacheco Dourado (PUC/SP)
Regina Célia Almeida Rego Prandini

Henri Wallon, além de elaborar uma teoria sobre o desenvolvimento humano, em virtude de sua preocupação com a educação, escreveu também sobre suas idéias pedagógicas apontando bases que a psicologia pode oferecer à atuação pedagógica e o uso que a pedagogia pode fazer dessas bases, além de se nutrir da experiência pedagógica.
Além dos textos voltados para a educação, Wallon expressou suas idéias pedagógicas também no Projeto Langevin-Wallon, um projeto de reforma para o ensino da França que ele elaborou juntamente com físico Paul Langevin, e que não chegou a ser implantado.
Apesar disso, a teoria de desenvolvimento de Wallon é ainda hoje pouco divulgada nos meios educacionais. Por acreditar que ela possa contribuir para a psicologia da educação, ou para a psicologia e para a educação, esperamos com o presente trabalho lançar algumas sementes, contribuindo para a construção de um espaço de interlocução para os, hoje ainda poucos, educadores wallonianos.
Psicogenética, essencialmente sociocultural e relativista, com forte lastro orgânico, a teoria de Wallon considera o desenvolvimento da pessoa completa integrada ao meio em que está imersa, com os seus aspectos afetivo, cognitivo e motor também integrados.
Assim, a ênfase é para a integração – entre organismo e meio e entre as dimensões: cognitiva, afetiva, e motora na constituição da pessoa. A pessoa é vista como o conjunto funcional resultante da integração de suas dimensões, cujo desenvolvimento se dá na integração de seu aparato orgânico com o meio, predominantemente o social.

O organismo em desenvolvimento na constituição da pessoa

O desenvolvimento tem seu início na relação do organismo do bebê recém-nascido, essencialmente reflexos e movimentos impulsivos, também chamados descargas motoras, com o meio humano que as interpreta. Nesta fase distingue-se apenas estados de bem-estar ou desconforto. São as reações do ambiente humano, representado pela mãe, motivadas pela interpretação da mímica do bebê que permitem distinguir as emoções básicas. Essa mímica não é casual, mas um recurso biológico da espécie, essencialmente social, que faz do bebê um ser capaz de produzir, no ambiente humano, ainda representado pela mãe, um efeito mobilizador para sobreviver.
Desta forma é a dimensão motora que dá a condição inicial ao organismo para o desenvolvimento da dimensão afetiva.
A criança humana atua primeiro, não no mundo físico, mas no ambiente humano. A mobilização do outro se faz pela emoção. É da protoconsciência, emocional, subjetiva que irá se desenvolver a consciência reflexiva. A vida psíquica é resultante do encontro da vida orgânica com o meio social.
Esse processo de desenvolvimento está ancorado no desenvolvimento neurológico, como sua condição e limite. A maturação orgânica é considerada condição para o desenvolvimento e permite descreve-lo em estágios sucessivos e integrados. “A maturação orgânica é indispensável à evolução funcional”.
Os primeiros meses de vida caracterizam-se por uma fusão total com o meio e pelo desenvolvimento rápido e completo dos automatismos emocionais responsáveis pela mobilização do meio humano para a satisfação das necessidades dos bebê. Estes automatismos dependem de centros nervosos especiais e aparecem na criança como fato de maturação.
O desenvolvimento das funções depende tanto de condições de maturação como de exercícios capazes de desenvolvê-las, portanto condições do meio. No estágio sensório-motor, a criança realiza um extenso e diferenciado acordo entre as percepções e os movimentos. Esta relação em sua forma mais simples é o ato reflexo, ou seja, a uma determinada excitação corresponde um determinado movimento. Com a maturação neurológica, os reflexos são inibidos e a criança se torna capaz de realizar exercícios sensório-motores que conduzem a um duplo resultado: ligar o efeito perceptível aos movimentos próprios para produzi-los, e diversificar os movimentos e os efeitos possíveis. Coordenando mutuamente os campos sensorial e motor, completa-se o arranjo funcional da atividade conforme as suas atividades objetivas.
É a ação motriz que regula o aparecimento e o desenvolvimento das funções mentais. O movimento espontâneo se transforma aos poucos em gesto, que, ao ser realizado a partir de uma intenção, se reveste de significação ligada à ação, voltada para a realização da cena, fora da qual nada significa.
O desenvolvimento das funções psicológicas superiores se dá, portanto, a partir do desenvolvimento das dimensões motora e afetiva. É a comunicação emocional que dá acesso ao mundo adulto, ao universo das representações coletivas. A inteligência surge depois da afetividade, e a partir das condições de desenvolvimento motor, e se alterna e conflitua com ela.
A cognição é vista como parte da pessoa completa que só pode ser compreendida integrada a ela, cujo desenvolvimento se dá a partir das condições orgânicas da espécie, e é resultante da integração entre seu organismo e o meio, predominantemente o social. Assim, o desenvolvimento é condicionado tanto pela maturação orgânica, como pelo exercício funcional, propiciado pelo meio. Segundo Wallon (1979):

O que permite à inteligência essa transferência do plano motor para o plano especulativo não é evidentemente explicável no desenvolvimento do indivíduo (...) mas nele pode ser identificada [a transferência] (...) são as aptidões da espécie que estão em jogo, em especial as que fazem do homem um ser essencialmente social. (p.131)

A evolução da espécie humana fez do homem um ser geneticamente social, desenvolvendo nele aptidões específicas. A função simbólica é a aptidão específica da espécie humana que se refere ao poder de encontrar, para um objeto, a sua representação e, para esta representação, um signo. O desenvolvimento deste potencial pela espécie tem na sua base a vida em sociedade que pressupõe objetivos comuns e necessidade de comunicação. Assim, o desenvolvimento da inteligência se processa em um organismo a priori capaz disso, dependendo para tanto de seu encontro com o meio social
Partes da pessoa completa, as funções psicológicas superiores, que se desenvolvem a partir de exercícios funcionais motores, serão mais tarde nutridas da sua inibição e não de sua estimulação. O movimento que se encontra na gênese da representação e a acompanha durante sua evolução inicial, termina por ser inibido por ela, condição necessária ao desenvolvimento das funções mentais específicas da representação pura
O desenvolvimento não se dá de maneira linear e contínua, mas por integração de novas funções e aquisições às anteriores. A acumulação quantitativa de funções culmina na evolução qualitativa das mesmas a partir de uma nova organização em que as dimensões motora, afetiva e cognitiva se integram de maneira diversa da fase anterior, alternando-se no exercício de predominância de uma sobre as demais. A preponderância de um dos aspectos sobre os demais é decorrente da sua integração, que é plástica, dinâmica e resultante da superação da oposição de um em relação aos outros.
Uma visão de conjunto, em que as dimensões da pessoa se integram de forma dinâmica, alternando-se em relação à predominância de uma frente às demais é necessária para a compreensão da concepção de desenvolvimento walloniana. A integração não é um estado alcançado ao final de um processo, mas define a condição plástica, o equilíbrio dinâmico da pessoa em desenvolvimento.
Wallon admite, a existência de três leis que regulam o processo de desenvolvimento da criança em direção ao adulto: a lei da alternância funcional, a da preponderância funcional e a da integração funcional
A primeira, chamada lei da alternância funcional, indica duas direções opostas que se alternam ao longo do desenvolvimento: uma centrípeta, voltada para a construção do eu e a outra centrífuga, voltada para a elaboração da realidade externa e do universo que a rodeia. Essas duas direções se manifestam alternadamente, constituindo o ciclo da atividade funcional.
A segunda é a lei da sucessão da preponderância funcional, na qual as três dimensões ou subconjuntos preponderam, alternadamente, ao longo do desenvolvimento do homem: motora, afetiva e cognitiva. A função motora predomina nos primeiros meses de vida da criança, enquanto as funções afetivas e cognitivas se alternam ao longo de todo o desenvolvimento, ora visando a formação do eu (predominância afetiva), ora visando o conhecimento do mundo exterior (predominância cognitiva).
A última lei, chamada de lei da diferenciação e integração funcional, diz respeito às novas possibilidades que não se suprimem ou se sobrepoem às conquistas dos estágios anteriores, mas, pelo contrário, integram-se a elas no estágio subsequente.
A integração dos três subconjuntos funcionais – motor, afetivo e cognitivo – constitui o último e quarto subconjunto funcional, denominado por Wallon pessoa. Para Wallon, em qualquer momento, ou fase do desenvolvimento, a pessoa é sempre uma pessoa completa.
Outra tendência apontada por Wallon, manifesta no desenvolvimento da pessoa completa é a de caminhar do sincretismo em direção à diferenciação. Movimentos, sentimentos e idéias são a princípio vividos de uma maneira global, até mesmo confusa, quando a pessoa não tem clareza da situação. Aos poucos, tornam-se mais claros e adequados às necessidades que a situação apresenta. Sobre esta questão, nos diz Mahoney (2000): Desenvolver-se é ser capaz de responder com reações cada vez mais específicas a situações cada vez mais variadas (p.14).
A Teoria das Emoções é de grande importância na obra de Wallon. Segundo o autor, a emoção é a exteriorização da afetividade, um fato fisiológico nos seus componentes humorais e motores e, ao mesmo tempo, um comportamento social na sua função de adaptação do ser humano ao seu meio:

...As emoções, são a exteriorização da afetividade(....) Nelas que assentam os exercícios gregários, que são uma forma primitiva de comunhão e de comunidade. As relações que elas tornam possíveis afinam os seus meios de expressão, e fazem deles instrumentos de sociabilidade cada vez mais especializados. (Wallon, 1995, p. 143)

A emoção, antes da linguagem, é o meio utilizado pelo recém–nascido para estabelecer uma relação com o mundo humano. Gradativamente, os movimentos de expressão, primeiramente fisiológica, evoluem até se tornarem comportamentos afetivos mais complexos, nos quais a emoção, aos poucos, cede terreno aos sentimentos e depois às atividades intelectuais.
As emoções são instantâneas e diretas e podem expressar–se como verdadeiras descargas de energia. Quando isto ocorre, elas têm o poder de se sobrepor ao raciocínio e ao conhecimento.
A afetividade evolui conforme as condições maturacionais de cada pessoa e com formas de expressões diferenciadas, que se configuram como um conjunto de significados que o indivíduo adquire nas relações com o meio, com a cultura, ao longo da vida. Os significados representam para cada pessoa as diferentes situações e experiências vivenciadas num determinado momento e ambiente social. Por este motivo afetividade não permanece imutável ao longo da trajetória da pessoa.
A afetividade, corresponde à energia que mobiliza o ser em direção ao ato, enquanto a inteligência corresponde ao poder estruturante que o modela a partir dos esquemas disponíveis naquele momento.
Para Wallon, a emoção precede nitidamente o aparecimento das condutas do tipo cognitivo e é um processo corporal que, quando intenso, pode impulsionar a consciência a se voltar para as alterações proprioceptivas, prejudicando a percepção do exterior. Em virtude de seu poder de sobrepor-se à preponderância da razão, é necessário, segundo Wallon, manter-se uma “baixa temperatura emocional” para que se possa trabalhar as funções cognitivas.
A emoção é capaz de preponderar sobre a razão sempre que à última faltem recursos para controlar a primeira. O desenvolvimento deve conduzir à predominância da razão, pois, para Wallon, “a razão é o destino final do homem”.
A integração entre as dimensões motora, afetiva e cognitiva, conceito central da teoria de Wallon, é claramente descrito por Mahoney (2000):

O motor, o afetivo, o cognitivo, a pessoa, embora cada um desses aspectos tenha identidade estrutural e funcional diferenciada, estão tão integrados que cada um é parte constitutiva dos outros. Sua separação se faz necessária apenas para a descrição do processo. Uma das conseqüências dessa interpretação é de que qualquer atividade humana sempre interfere em todos eles. Qualquer atividade motora tem ressonâncias afetivas e cognitivas; toda disposição afetiva tem ressonâncias motoras e cognitivas; toda operação mental tem ressonâncias afetivas e motoras. E todas essas ressonâncias têm um impacto no quarto conjunto: a pessoa. (p. 15)

O papel do meio na constituição da pessoa

O conceito de meio é fundamental na teoria walloniana. Nela, como já foi acima referido, a pessoa constitui-se na integração de seu organismo com o meio, estando o social sobreposto ao natural. As atitudes da pessoas são consideradas complementares às do meio, tanto quanto determinadas pelas suas disposições individuais e pelo papel e lugar que ocupa no grupo social. Portanto, a pessoa deve ser vista integrada ao meio do qual é parte constitutiva e no qual, ao mesmo tempo, se constitui. A este respeito nos diz Wallon (1975):

Sem dúvida que o papel e o lugar que aí ocupa [a criança] são em parte determinados pelas suas próprias disposições, mas a existência do grupo e as suas exigências não se impõem menos à sua conduta. Na natureza do grupo, se os elementos mudam, as suas reações mudam também. (p.20)

A constituição da pessoa se dá de acordo com suas condições de existência. O meio social e a cultura constituem as condições, as possibilidades e os limites de desenvolvimento para o organismo.
Durante a primeira etapa, denominada por Wallon de Estágio Impulsivo, os atos da criança têm o objetivo de chamar a atenção do adulto por meio de gestos, gritos e expressões, para que ele satisfaça as suas necessidades e garanta assim a sua sobrevivência.
Durante o desenvolvimento, a simbiose respiratória do feto se transforma em simbiose alimentar no recém-nascido e, por volta dos três meses, em simbiose afetiva, característica específica da espécie humana. A esta fase Wallon chama de Estágio Emocional.
A criança aos poucos aprende a contagiar o adulto com sorrisos e sinais de contentamento, o que caracteriza laços de caráter afetivo com aqueles que estão à sua volta, e demonstra necessidade de manifestações afetivas, necessidade que precisa ser satisfeita para que tenha um desenvolvimento satisfatório.
Para que a humanidade possa sobreviver, é necessário que a imperícia do recém-nascido afete o outro e provoque nele sentimentos de solidariedade; é a garantia de sobrevivência da espécie. Este, para Wallon, é o maior indicador de que o meio social é privilegiado para a criança em desenvolvimento, e para o homem adulto, em relação ao meio físico.
A criança, que está primeiramente ligada à mãe, aos poucos diferencia outras pessoas que desempenham papéis significativos em relação a ela, como, por exemplo, pai, avós, tios e padrinhos. Sua sociabilidade se amplia rapidamente quando começa a andar e a falar. Andando, a criança pode interagir mais com o ambiente que o cerca. A aquisição da linguagem a possibilita ao nomear objetos e pessoas, diferenciá-los.
Nesta etapa, denominada por Wallon de Estágio Sensório-Motor, a criança aprende a conhecer os outros como pessoas em oposição à sua própria existência.
É o tempo dos jogos espontâneos de alternância, do interesse por atos que unem duas pessoas ou, principalmente, papéis diferentes, como por exemplo, o jogo de dar e receber tapinhas, de esconder e ser escondido pela almofada, etc.
Esses jogos alargam o horizonte e a vivência da criança, pois fazem com que ela conceba relações mais ricas. Nesse período, a criança ainda está estreitamente dependente do outro, pois seu processo de individuação está apenas se iniciando. Ela ainda vive sua relação com o outro de maneira bastante sincrética, sem se diferenciar claramente dele.
É somente no Estágio do Personalismo, que vai dos três aos cinco anos, que a criança realmente se diferencia do outro, que toma consciência de sua autonomia em relação aos demais. Ela percebe as relações e os papéis diferentes dentro do universo familiar, ao mesmo tempo que se percebe como um elemento fixo, como ser o filho mais velho ou o mais novo, ser filho e irmão, assim por diante.
Nessa idade, a criança também costuma ingressar na escola maternal, inserindo-se numa comunidade de crianças semelhantes a ela, onde as relações serão diferentes das relações familiares. As necessidades dessa faixa etária ainda exigem do professor cuidados de caráter pessoal, diretos, quase como os de mãe.
Na etapa seguinte, denominada Categorial, idade de escolaridade obrigatória na maioria dos países, o desenvolvimento cognitivo da criança está aguçado e a sua sociabilidade ampliada. A criança se vê capaz de participar de vários grupos com graus e classificações diferentes segundo as atividades de que participa. Esta etapa é importante para o desenvolvimento das aptidões intelectuais e sociais da criança.
Vivenciar a necessidade de se perceber como indivíduo, e, ao mesmo tempo, de medir sua força em relação ao grupo social a que pertence, faz desta fase um período crítico do processo de socialização, pois segundo Wallon (1975):

Há tomada de consciência pelo indivíduo do grupo de que faz parte, há tomada de consciência pelo grupo da importância que pode ter em relação aos indivíduos. (p.215)

A adolescência, que para Wallon tem início aos 12 anos com a puberdade, é marcada por transformações de ordem fisiológica, mudanças corporais impostas pelo amadurecimento sexual, assim como transformações de ordem psíquica com preponderância afetiva.
Nesse estágio, os sentimentos se alternam procurando buscar a consciência de si na figura do outro, contrapondo–se a ele, além de incorporar uma nova percepção temporal.
O meio social e cultural passam a ser de grande importância. Os adolescentes tornam-se intolerantes em relação às regras e ao controle exercidos pelos pais, e necessitam identificar-se com seu grupo de amigos.
Na adolescência torna-se bastante visível a forma como o meio social condiciona a existência da pessoa, configurando-se a personalidade de maneiras diversas. Enquanto os adolescentes de classe média exteriorizam seus sentimentos e questionam valores e padrões morais, os de classes operárias, que enfrentam precocemente a realidade social do adulto, a necessidade de trabalho, vivem essa fase de outra maneira, pois têm de contribuir para a subsistência da família.
Para Wallon o processo de socialização da pessoa não se dá apenas no seu contato com o outro nas diversas etapas do desenvolvimento e da vida adulta, mas também no contato com a produção do outro. O encontro com o texto, com a pintura ou com a música produzida pelo outro, propicia a identificação como homem genérico e, ao mesmo tempo, a diferenciação como homem concreto, o que contribui ao processo de individuação e constituição do eu. É por isso que, segundo Wallon, a cultura geral aproxima os homens, à medida que permite a identificação de uns com outros, enquanto a cultura específica e o conhecimento técnico afastam-os, ao individualizá-los e diferenciá-los.
A cultura é, para Wallon, ao mesmo tempo, fator constituinte da pessoa e representante das aptidões totais do homem genérico, à medida que é constituída pela totalidade dos homens de determinada época e lugar.

Contribuições da teoria à Educação

Wallon chama de humanismo ampliado a concepção que implica a plena realização do homem em cada indivíduo. O homem completo só é concebido em sua forma universal atribuindo-lhe o poder de compreender, ponderar e escolher.
Uma educação humanista, segundo Wallon, deve considerar todas as disposições que constituem o homem completo, mesmo estando desigualmente repartidas entre os indivíduos, pois qualquer indivíduo potencialmente pode se desenvolver em qualquer direção, a depender de seu aparato biológico e das condições em que vive.
Segundo Wallon, como uma aptidão só se manifesta se encontrar ocasião favorável e objetos que lhes respondam. Muitas aptidões novas poderiam manifestar-se no encontro das necessidades psicológicas das crianças e as necessidades crescentes da sociedade.
Assim, o acesso à cultura é função primordial da educação formal, pois ela é a expressão do florescimento das criações e das aptidões do homem genérico, universal, sejam manuais, corporais, estéticas, intelectuais ou morais. A escola é parte das condições de existência na qual a pessoa se desenvolve e constitui, devendo intervir neste processo de maneira a promover o desenvolvimento de tantas aptidões quantas for possível.
O Projeto Langevin-Wallon propunha uma educação integral do pré–escolar até a universidade e tinha na sua gênese a preocupação com a formação dos valores éticos e morais, pois considerava a escola um espaço social adequado para tal. Visando uma educação preocupada com a formação geral sólida, para a autonomia, a cidadania e a orientação profissional, fundamentadas pelos princípios de justiça, igualdade e respeito à diversidade, o projeto sistematizou e sugeriu etapas consecutivas que priorizassem aspectos e necessidades específicas de cada faixa etária, respeitando o desenvolvimento afetivo, cognitivo de socialização e maturação biológica de cada indivíduo.
Os programas educacionais deveriam ser reformados de maneira que toda aptidão pudesse ser orientada, cultivada segundo sua natureza, de forma que o ensino recebido fosse uma preparação suficiente para o exercício de qualquer função que poderia oferecer-se mais tarde.
Wallon acreditava serem as aptidões cultivadas, desenvolvidas em contato com a cultura, e não inatas, embora elas dependam também de condições orgânicas. Por isso atribuiu à escola, como função primordial, dar acesso a cultura visando o cultivo das aptidões, pois só podem exercer as disposições que constituem o homem completo – compreender, ponderar e escolher – aqueles aos quais for dado a conhecer a cultura de seu tempo.
Wallon acreditava que todos deveriam ter oportunidades iguais, inclusive ao respeito à singularidade, e para isso seria necessário haver escola para todos onde cada um pudesse encontrar, segundo suas aptidões, todo o desenvolvimento intelectual, estético e moral que fosse capaz de assimilar. Oferecida uma base comum, dever-se-ia também propiciar condições para que a criança, experimentando, descobrisse suas tendências de acordo com seu estágio de desenvolvimento:
 dos três aos onze anos, as aptidões parecem não contribuir de maneira eficiente. Exatamente por este motivo, o momento seria propício, segundo Wallon, para orientar e cultivar todas elas, cada uma de acordo com sua natureza: manual, corporal, estética, intelectual e moral.
 entre onze e quinze anos, sobre um fundo de aquisições comuns, emergem aptidões mais particulares, mais pessoais, mais originais que devem encontrar tarefas que ajudem no desenvolvimento. A oferta de alternativas deveria ser ampla o suficiente para permitir à criança, ao exercitar e desenvolver novas funções, reconhecer suas preferências e seus dificuldades.
 à universidade caberia a formação profissional, a investigação científica e a difusão da cultura associando uma cultura geral superior a uma especialização muito avançada.
Wallon afirma que o meio e a cultura condicionam os valores morais e sociais que a criança incorporará, e que devem ser cultivados os valores de solidariedade e justiça. Insiste na importância de o professor conhecer as condições de existência de seu aluno, para saber quais os valores que nela estão sendo cultivados, nos outros meios em que está imersa, e saber como cultivar aqueles que são seu objetivo.
A partir de sete anos, a criança vive, ao mesmo tempo, sentimentos e situações de cooperação, exclusão e rivalidade. Caberia ao professor intervir, propondo atividades que privilegiem trabalhos em grupo e atitudes de cooperação, em relação aos trabalhos individuais, uma vez que, nessa época, podem acirrar-se rivalidades em detrimento da solidariedade. Além disso, o momento é propício para preparar a criança para a etapa seguinte que é a adolescência.
Diante do adolescente, compreendendo as características de seu estágio de desenvolvimento, o professor pode atuar no sentido de ajudá-lo a distinguir valores sociais e morais.
A responsabilidade é um dos sentimento que o educador deve buscar promover no adolescente, uma vez que ela tem ingredientes capazes de mobilizar essa faixa etária graças às suas características específicas, pois responsabilidade representa, segundo Wallon (1975):

Tomar a seu cargo o êxito de uma ação que é executada em colaboração com outros ou em proveito de uma coletividade. A responsabilidade confere um direito de domínio, por uma causa mas também um dever de sacrifício, o que significa que o adolescente responsável é aquele que deve se sacrificar maior, por tarefas sociais que contribuem para o crescimento e desenvolvimento da coletividade e do grupo. (p. 222)

O professor pode, desta forma, auxiliar o adolescente em suas indecisões e angústias, propondo atividades que propiciem o reconhecimento de suas tendências e o cultivo de aptidões e orientando a proposição de metas e objetivos futuros.

Considerações finais

Com certeza a tarefa de educar demanda posturas e conhecimentos diferenciados da parte do professor, pois ele desempenha o papel de mediador do processo escolar de aquisição da cultura pelo aluno, e, portanto, de cultivador de aptidões. Desta forma, apresenta-se a nós uma tarefa complexa, que requer habilidades e conhecimentos específicos, autoconhecimento e conhecimento do universo social do professor e do aluno, para aí então tomar decisões comprometidas com a constituição da pessoa do aluno.
O conhecimento do desenvolvimento do aluno, das necessidades específicas de cada etapa, deve pautar a prática pedagógica, que é uma intervenção nesse processo em determinada direção, a ser feita de maneira consciente e responsável, em consonância com valores morais e sociais, objetivos e metas educacionais.
Falar sobre infância e adolescência representa, de início, uma dificuldade por serem elas, antes de mais nada, construções culturais, situadas, datadas, cujas contraposições com o universo do adulto podem ser diversificadas.
Para compreendermos a criança e o adolescente de hoje, é útil compreendermos como esses conceitos, desde a sua origem, evoluíram através dos tempos, chegando até nós. Necessário também é procurar conhecer e compreender em que circunstâncias o referencial teórico que norteia o nosso olhar foi produzido, para, ao analisá-lo, sermos capazes de verificar o que precisa ser revisto e readaptado em função de condições existenciais distintas daquelas em que a teoria foi produzida.
Além disso, faz-se ainda necessário termos clareza dos pressupostos que norteiam a nossa visão de criança e adolescente constituída ao longo de nossa trajetória pessoal, como pessoas e sujeitos históricos. Conhecer esses pressupostos, a princípio, é tornar-se capaz de redimensioná-los para maior adequação à realidade objetiva e às nossas metas e objetivos como professores e, portanto, interventores no processo de desenvolvimento de nossos alunos.
As novas gerações levantam a necessidade de outra avaliação das relações interpessoais e da relação com o conhecimento. Há necessidade de pesquisas capazes de proporcionar uma melhor compreensão dessas relações, gerando bases para novas práticas pedagógicas.
Costumamos ouvir dos professores discursos sobre a importância de formarmos alunos conscientes, cujos valores éticos e morais lhes possibilite exercer o papel de cidadãos. Mas, como fazê-lo?
Acreditamos que a teoria de Wallon, por seu forte lastro orgânico, o que a ancora nas aptidões características da espécie, e por sua essência sociocultural relativista, é capaz de contribuir para a compreensão do desenvolvimento das crianças e dos adolescentes de nossos tempos e cultura, ao mesmo tempo em que suas idéias pedagógicas nos parecem bastante adequadas ao tipo de escola capaz de atender aos interesses e necessidades de nossos alunos da era digital.
Uma reflexão extremamente relevante sobre as implicações da teoria de Wallon para a educação, especificamente sobre o papel do professor, nos é apresenta por Almeida (2000):

Wallon, psicólogo e educador, legou-nos muitas outras lições. A nós, professores, duas são particularmente importantes. Somos pessoas completas: com afeto, cognição, e movimento, e nos relacionamos com um aluno, também pessoa completa, integral, com afeto cognição e movimento. Somos componentes privilegiados do meio de nosso aluno. (p.86)

Conseqüência da presente interpretação da teoria e princípios wallonianos, é a concepção do professor como pessoa completa e de seu papel como mediador da cultura de seu tempo e, portanto, um cultivador das novas aptidões possibilitadas por ela.
Impõe-se-nos desta forma uma importante questão: estaremos nós preparados para sermos mediadores da cultura digital? Temos nós próprios, professores-pessoas, desenvolvidas as aptidões próprias desta cultura? Estamos aptos a exercer nosso papel como interventores no processo de desenvolvimento de nossos alunos no sentido de promover a aquisição de conhecimentos e valores adequados à formação do cidadão desta nova era?
Que tipo de formação deve ser propiciada à pessoa do professor, para que, em seu encontro com a pessoa do aluno ele seja capaz de desempenhar bem o seu papel de mediador da cultura de seu tempo, que chamamos aqui de cultura digital, cultivando nele aptidões compatíveis com ela, de forma que o ensino ministrado por ele seja uma preparação suficiente para o exercício de qualquer função que poderá oferecer-se mais tarde?
Temos pela frente ainda um longo caminho a percorrer até que sejamos capazes de dar alguma resposta a esta pergunta, mas acreditamos que para fazê-lo é necessário investir na formação da pessoa do professor, principalmente na formação contínua, considerando a sua experiência na escola, diante do aluno, lugar em que se constitui professor. A este respeito nos diz Wallon (1975):

A formação psicológica dos professores não pode ficar limitada aos livros. Deve ter referência perpétua nas experiência pedagógicas que eles próprios podem pessoalmente realizar (p.366)

REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA

ALMEIDA, Laurinda Ramalho de, (2000). Wallon e a Educação. In: Henri Wallon – Psicologia e Educação. São Paulo: Loyola.
MAHONEY, Abigail Alvarenga, (2000). Introdução. In: Henri Wallon – Psicologia e educação. São Paulo: Loyola.
WALLON, Henri, (1975). Psicologia e Educação da Infância. Lisboa: Estampa.
_____. (1979) Do acto ao pensamento. Lisboa: Moraes.